sábado, 16 de fevereiro de 2019

Análise de Classe Libertária

Marx não originou a análise de classes ou a ideia de conflito de classes



Diga as palavras “análise de classe” ou “conflito de classes” e a maioria das pessoas pensarão em Karl Marx. A ideia de que existem classes irreconciliáveis, seu conflito inerente à natureza das coisas, é uma das assinaturas do marxismo. Sendo esse o caso, as pessoas que não querem nada com o marxismo, provavelmente, não querem nada a ver com a análise de classes.

Por isso, deve ser interessante saber que Marx não originou a análise de classes ou a ideia de conflito de classes. Essas coisas têm suas raízes no liberalismo radical, ou libertarianismo, precedendo os escritos de Marx. De fato, o próprio Marx fez uma homenagem aos criadores, um grupo de historiadores da França pós-napoleônica que foram negligenciados por todos, menos por um punhado de libertários modernos. (Neste artigo me baseio em quatro desses libertários, os historiadores Ralph Raico, Leonard Liggio e David M. Hart, e o economista-historiador Walter E. Grinder).

Os nomes dos principais historiadores franceses do século XIX são Charles Comte, Charles Dunoyer e Augustin Thierry, cuja publicação, Le Censeur européen, era um foco de pensamento liberal radical. Como relatado por Raico, Grinder e Hart, Comte e Dunoyer foram influenciados pelo importante, mas subestimado, economista liberal francês J.B. Say, que Murray Rothbard enalteceu como brilhantemente inovador, o superior de Adam Smith. (Comte acabou se casando com a filha de Say.) De fato, as sementes de uma teoria radical de classes liberais foram encontradas na segunda edição do Tratado de Economia Política de Say (publicado pela primeira vez em 1803), que refletia sua resposta aos gastos militares de Napoleão e manipulação econômica.

Como Say escreveu em outra de suas obras,

As enormes recompensas e as vantagens geralmente associadas ao emprego público despertam muito a ambição e a cupidez. Eles criam uma luta violenta entre aqueles que possuem posições e aqueles que os querem.

Segundo Hart, Comte e Dunoyer ficaram impressionados com a opinião de Say de que os serviços prestados no mercado são produtivos - isto é, úteis - “bens imateriais” e que o empreendedor, como o trabalhador, é um produtor. Hart escreve:

Uma consequência da visão de Say é que havia muitos contribuintes produtivos para o novo industrialismo, incluindo proprietários de fábricas, empreendedores, engenheiros e outros tecnólogos, bem como aqueles da indústria do conhecimento, como professores, cientistas e outros “sábios” ou intelectuais.

Isso é importante para a questão da classe, cujo objetivo é identificar os exploradores e explorados. Como todos sabem, Marx, pelo menos em alguns de seus escritos, achava que apenas os trabalhadores eram industriosos, com donos de capital pertencentes à classe exploradora (com o estado como seu "comitê executivo"). Ele colocou os donos do capital entre os exploradores por causa de sua teoria do valor-trabalho (herdada de Adam Smith e David Ricardo): como o valor dos bens era equivalente ao trabalho socialmente necessário para produzi-los, o lucro e os juros coletados pelos capitalistas deve ser extraído das recompensas dos trabalhadores - daí a sua exploração. Se a teoria do valor-trabalho falhar e se a troca for totalmente voluntária, sem privilégios de Estado, então não ocorrerá exploração.

Assim, é crucial ver que os pensadores de quem Marx aparentemente aprendeu sobre a análise de classe colocam na classe produtiva todos os que criam utilidade através da troca voluntária. O “capitalista” (significando neste contexto o dono de bens de capital que não está ligado ao estado) pertence à classe trabalhadora junto com os trabalhadores.

Quem foram os exploradores? Todos os que viviam à força das classes trabalhadoras. “As conclusões tiradas por Comte e Dunoyer (e Thierry) é que existia uma classe expandida de 'industriais' (que incluía trabalhadores manuais e os empreendedores e sábios acima mencionados) que lutavam contra outros que queriam impedir sua atividade ou viver improdutivamente fora dele”, escreve Hart.

Os teóricos do industrialismo concluíram, a partir de sua teoria da produção, que eram o Estado e as classes privilegiadas que se aliavam ao Estado, e não a toda atividade não agrícola, que eram essencialmente improdutivas. Eles também acreditavam que ao longo da história houve um conflito entre essas duas classes antagônicas que só poderia ser levado ao fim com a separação radical da sociedade civil pacífica e produtiva das ineficiências e privilégios do Estado e seus favoritos.

Assim, a história política e econômica é o registro do conflito entre os produtores, independentemente de sua posição, e das classes políticas parasitas, tanto dentro quanto fora do estado formal. Ou, para usar os termos de um assinante posterior nessa visão, John Bright, era um confronto entre os contribuintes e os consumidores de impostos.


Economia política e liberdade

Hart salienta que o trabalho de Comte e Dunoyer elevou a análise de Say. Onde Say encarava a economia e a política como disciplinas separadas, com o último tendo pouco efeito sobre o primeiro, os analistas de classe liberais viram que o próprio trabalho de Say tinha implicações mais radicais. “A ciência da economia política era 'carregada de valores' como poderíamos dizer e implicava políticas bastante específicas sobre propriedade, intervenção governamental na economia e liberdade individual, algo que Say não apreciava, mas que Dunoyer e Comte incorporaram em seu trabalho”, escreve Hart.

Dunoyer estava interessado na frase “[o] fim único das nações modernas é a paz (de espírito), e com a paz vem o conforto (a presença), e a fonte de conforto é a indústria”, que resumiu bem seus próprios pensamentos sobre o verdadeiro objetivo da organização social.

Raico também apontou que a análise de classe liberal pode ser encontrada nos escritos dos ativistas de liberdade e comércio de Manchester, Richard Cobden e John Bright e de Herbert Spencer. Ele cita Bright na luta contra as Leis do Milho (tarifas de importação de grãos):

Eu duvido que possa ter qualquer outro caráter [que, o de] ... uma guerra de classes. Acredito que isso seja um movimento das classes comercial e industrial contra os senhores e os grandes proprietários do solo.

De fato, Raico enfatiza, a Escola de Manchester entendeu que a guerra e outras intrigas políticas eram motivadas pela busca da classe política pela riqueza não adquirida. Tais ideias também estavam presentes entre outros pensadores liberais, incluindo Thomas Paine, John Taylor, de Caroline, John C. Calhoun, Albert Jay Nock e Ludwig von Mises.


Guerra de classes e estatismo

Qual é o resultado dessa visão geral reconhecidamente truncada? O poder tributário coercitivo do governo necessariamente cria duas classes: aqueles que criam e aqueles que consomem a riqueza expropriadas e transferidas por esse poder. Aqueles que criam a riqueza naturalmente querem mantê-la e dedicar-se a seus próprios propósitos. Aqueles que desejam expropriar-se procuram formas cada vez mais inteligentes de adquiri-lo sem incitar a resistência. Uma dessas maneiras é a difusão de uma elaborada ideologia do estatismo, que ensina as pessoas que [elas próprias] são o Estado e que, portanto, só pagam a si mesmas quando pagam impostos.

Os oficiais do estado e os intelectuais da corte nas universidades e na mídia noticiosa fazem todo o possível para que as pessoas acreditem nessa história fantástica, incluindo a criação de escolas. Infelizmente, a maioria das pessoas passam a acreditar nisso. O papel da guerra é assustar as pessoas para que paguem impostos por sua própria proteção e para manter a riqueza fluindo para os exploradores com um mínimo de reclamação.

O que os libertários podem fazer sobre isso? Primeiro, eles devem entender a teoria da classe liberal. Eles não devem fugir disso porque foi sequestrado pelos marxistas. Segundo, eles devem usar qualquer influência que tenham para elevar a consciência de classe de todas as pessoas honestas e produtivas. Isto é, os industriosos devem mostrar que são vítimas diárias da classe política dominante.


Ler mais:

  • Hart, David M. “The Radicalism of Charles Comte and Charles Dunoyer.”
  • Hart, David M., and Walter E. Grinder. “The Basic Tenets of Real Liberalism. Part IV Continued: Interventionism, Social Conflict and War.” Humane Studies Review 3, no. 1 (1986):1–7.
  • Liggio, Leonard P. “Charles Dunoyer and French Classical Liberalism.” Journal of Libertarian Studies 1, no. 3 (1977): 153–78.
  • Raico, Ralph. “Classical Liberal Exploitation Theory: A Comment on Professor Liggio’s Paper.” Journal of Libertarian Studies 1, no. 3 (1977): 179–83.


Por Sheldon Richman
1 de junho de 2006
Em: FFF

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Libertarianismo: Esquerda ou Direita?

Esquerda e direita não se referiam apenas a qual lado da assembléia se sentava ou a atitude do indivíduo em relação ao regime




Minha própria noção de política é que segue uma linha reta em vez de um círculo. A linha reta se estende da extrema direita, onde (historicamente) encontramos monarquia, ditaduras absolutas e outras formas de governo absolutamente autoritário. Na extrema direita, a lei e a ordem significam a lei do governante e a ordem que serve ao interesse daquele governante, geralmente a ordem dos trabalhadores e estudantes submissos, e de anciãos ou totalmente confinados à lealdade ou totalmente doutrinados e treinados para essa lealdade. Tanto Joseph Stalin quanto Adolf Hitler operaram regimes de direita, politicamente, apesar das armadilhas do socialismo com as quais ambos adornavam seus regimes.

A esquerda radical, até onde você poderia se afastar da direita, representaria logicamente a tendência oposta e, de fato, fez exatamente isso ao longo da história. A esquerda tem sido o lado da política e da economia que se opõe à concentração de poder e riqueza e, em vez disso, defende e trabalha para a distribuição do poder no número máximo de mãos.
-  Karl Hess, dear America


O libertarianismo é de direita ou de esquerda? Muitas vezes evitamos essa pergunta com um retumbante “Nem um, nem outro”. Dada a forma como esses termos são usados ​​hoje, essa resposta é compreensível. Mas é insatisfatório quando visto historicamente.

De fato, o libertarianismo é germinado diretamente na esquerda, como tentarei demonstrar aqui.

Os termos foram aparentemente usados ​​pela primeira vez na Assembléia Legislativa Francesa após a revolução de 1789. Nesse contexto, aqueles que se sentaram à direita da assembléia eram firmes defensores da destronada monarquia e aristocracia - o Ancien Régime - (e portanto eram conservadores) enquanto aqueles que se sentaram à esquerda se opuseram à sua reintegração (e, portanto, eram radicais). Deveria resultar disso que os libertários, ou liberais clássicos, se sentariam à esquerda.

Factualmente, é aí que eles se sentaram. Frédéric Bastiat, o escritor e ativista radical do laissez-faire, foi um membro da assembléia (1848–1850) e sentou no lado esquerdo junto com Pierre-Joseph Proudhon, o "mutualista", cujo ditado "A liberdade é a mãe, não a filha, de ordem" agraciou o cabeçalho do Liberty, o jornal do libertário e anarquista individualista americano Benjamin Tucker.

(Proudhon também é famoso por dizer: "Propriedade é roubo", mas o contexto completo de seu trabalho deixa claro que ele se referia à posse ausente resultante do privilégio estatal, pois ele também escreveu, em Théorie de la propriété, “Onde encontraremos um poder capaz de contrabalançar este poder formidável do Estado? Não há outro exceto propriedade […]. O direito absoluto do Estado está em conflito com o direito absoluto do proprietário. A propriedade é a maior força revolucionária que existe.”).

Desde cedo libertários foram vistos, e viram-se, como estar na esquerda. Obviamente, "a esquerda" pode incluir pessoas que concordaram com muito pouco - desde que se opusessem ao regime estabelecido (ou restauração do antigo regime). A esquerda francesa, na primeira metade do século XIX, incluía individualistas e coletivistas, livre-mercado de laissez-faire e aqueles que queriam o controle estatal dos meios de produção, o socialismo de estado. Pode-se dizer que a própria esquerda tinha alas de esquerda e direita, até mesmo com 'laissez-fairistas' mais à esquerda do que socialistas de estado.

Não importa como você considere isso, o libertarianismo era da esquerda.


Esquerda, Direita e o estado

Esquerda e direita não se referiam apenas a qual lado da assembléia se sentava ou a atitude do indivíduo em relação ao regime. Essa atitude foi uma manifestação de uma visão mais profunda do governo. A esquerda entendeu que historicamente o estado era o mais poderoso motor de exploração, embora as várias facções discordassem sobre a natureza exata da exploração ou sobre o que fazer a respeito dela. Marx não detinha o monopólio da ideia. Ao contrário, ele a apropriou (e depois a degradou) dos liberais radicais burgueses do início do século XIX, Charles Comte e Charles Dunoyer, que primeiro formularam a teoria do conflito de classes. Na versão liberal, duas classes (castas) surgiram no momento em que o governo empenhou-se em saques: os saqueadores e saqueados. Os saqueadores eram aqueles que usavam o estado para viver do trabalho dos outros. Os saqueados foram aqueles cujos frutos foram roubados - todos os membros das classes trabalhadoras, que incluíam aqueles no mercado que produziam e trocavam pacificamente e que não estavam pilhando os outros. (Marx mudou a tese de Comte-Dunoyer para pior ao mover os empregadores sem ligações com o estado da classe trabalhadora para a de exploradores. Isso se relacionava com sua teoria do valor trabalhista, que dividia grupos de esquerda, uma questão interessante que está além o escopo aqui. Para mais, veja artigo “Análise de Classe Libertária”, Freedom Daily, junho de 2006).

Assim, a esquerda foi identificada com a libertação dos trabalhadores (amplamente definida). Hoje não associamos libertários a essa noção, mas estava no centro da visão libertária. Você pode vê-lo em Bastiat, Richard Cobden, John Bright, Thomas Hodgskin, Herbert Spencer, Lysander Spooner, Tucker e o resto dos primeiros liberais que nunca deixaram de enfatizar o papel do trabalho na produção.

Vale a pena ressaltar aqui que a palavra “socialismo” também passou por mudanças por tempos anteriores. Tucker, que orgulhosamente aceitou a descrição "homem consistente de Manchester" (o Manchesterianismo denotava a filosofia do laissez-faire dos mercadores ingleses de livre comércio Cobden e Bright), chamava a si mesmo de socialista." O “capitalismo” foi identificado com privilégios estatais para os proprietários de capital em detrimento dos trabalhadores e, portanto, foi desprezado como um sistema de exploração. Intervenções como impostos, regulamentos, subsídios, tarifas, licenciamento e política fundiária restringiam a concorrência e, portanto, limitavam a demanda por mão-de-obra, bem como oportunidades de trabalho autônomo. Tais medidas reduziram o poder de barganha do trabalho e os salários deprimidos, o que para os libertários de esquerda constituía pilhagem patrocinada pelo Estado. Sua solução foi um laissez-faire completo, liberando a concorrência e maximizando o poder de barganha dos trabalhadores. (Os sindicatos eram vistos como uma maneira dos trabalhadores se ajudarem, pelo menos até que o laissez-faire pudesse ser introduzido. Mais tarde, os grandes sindicatos ligados ao governo eram suspeitos de fazer parte de um esforço para cooptar o movimento trabalhista e acalmá-lo com segurança no establishment.)

Os libertários também mostraram suas cores de esquerda ao se opor ao imperialismo, à guerra e às violações das liberdades civis, como o recrutamento e a detenção arbitrária. (Veja, por exemplo, os escritos de Bastiat, Cobden e Bright.) De fato, eles não simplesmente condenaram a guerra como equivocada; eles também o identificaram como um método-chave pelo qual a classe dominante explora as classes industriosas domésticas (para não mencionar as vítimas estrangeiras) por sua própria riqueza e glorificação. O libertarianismo e o movimento anti-guerra andaram de mãos dadas desde o início. 

Esse libertarianismo não é percebido hoje como foi nos anos de 1800 - e até, infelizmente, pela maioria dos libertários - é o resultado de vários fatores que levaram o movimento anterior ao declínio. Como resultado, movimentos nem sempre dedicados à liberdade individual entraram na brecha, deixando o libertarianismo parecer um ramo peculiar do conservadorismo. Murray Rothbard discute esse declínio em seu ensaio clássico “Esquerda e Direita: As Perspectivas da Liberdade”, que deve ser lido por qualquer pessoa interessada neste assunto. (Veja também a palestra de Roderick Long, “Rothbard’s ‘Left and Right’: Forty Years Late”).

Rothbard escreve:

Assim, com o liberalismo abandonado a partir de dentro, não havia mais um partido de esperança no mundo ocidental, não mais um movimento de “esquerda” para liderar uma luta contra o estado e contra o restante não-alcançado da velha ordem. Nesse vácuo, nessa lacuna criada pela secura do liberalismo radical, surgiu um novo movimento: o socialismo. Libertários dos dias atuais estão acostumados a pensar no socialismo como o oposto polar do credo libertário. Mas isso é um erro grave, responsável por uma grave desorientação ideológica dos libertários no mundo atual. Como vimos, o conservadorismo era o oposto polar da liberdade; e o socialismo, enquanto para a “esquerda” do conservadorismo, era essencialmente um movimento confuso e meio-termo. Era, e ainda é, meio-termo porque tenta alcançar fins liberais pelo uso de meios conservadores.

Em outras palavras, o socialismo de estado (em oposição ao socialismo de livre mercado de Tucker) prometia prosperidade e industrialização (fins liberais) através do controle governamental dos meios de produção (meios conservadores). Isso às vezes é conhecido como a Velha Esquerda, porque a Nova Esquerda, ou pelo menos aspectos dela, era mais cética em relação à industrialização em larga escala.

O que eu apresentei aqui deve confirmar a boa-fé esquerdista dos primeiros libertários. Além disso, essas distinções transitaram para o início do século XX. Por exemplo, H.L. Mencken e Albert Jay Nock, que eram libertários individualistas por qualquer padrão, eram considerados homens de esquerda na década de 1920. Mas na década seguinte, eles e seus aliados foram percebidos como estando do lado direito. Demasiado frequentemente libertários se colocaram lá e abraçaram seus "aliados" conservadores.

Parte da razão para isso vem da tentação de acreditar que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Quando os socialistas estatistas atacaram o mercado ("capitalismo") como parte de suas críticas à América, a direita, os conservadores, defenderam a liberdade econômica de maneira retorica (embora geralmente ignorem as características corporativistas do capitalismo para não alienar seus aliados comerciais). A retórica fez com que eles parecessem ser companheiros de armas com os libertários, muitos dos quais os aceitaram como tal. Foi um erro lamentável, porque a partir daí o libertarianismo parecia uma defesa não da liberdade econômica, mas da aliança existente entre empresas e estados. O libertarianismo, assim, mudou-se para a direita, e os libertários (com exceções) ficaram felizes em pensar em si mesmos dessa maneira. O exemplo clássico é o ensaio muito ridicularizado de Ayn Rand, “America's Persecuted Minority: Big Business” (Mas é claro de Atlas Shrugged que ela entendeu o que é o corporativismo). A impressão é reforçada pela quantidade desproporcional de esforços dados para denunciar o bem-estar das pessoas pobres e o tempo relativamente escasso dedicado à oposição ao bem-estar corporativo.

Desnecessário dizer que tudo isso roubou o movimento de sua vitalidade e, portanto, seu potencial de recrutamento.

Muito mais poderia ser dito sobre este assunto. Uma busca na Internet rapidamente revelará uma grande quantidade de escritos relevantes de escritores libertários modernos, além de Carson e Long, sobre as raízes esquerdistas do libertarianismo. Basta dizer aqui que, para que o movimento inspire novamente as vítimas do poder do governo, será necessário redescobrir essas raízes.



Por Sheldon Richman
1 de junho de 2007
E Freedom Daily (Archive)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

O que é o libertarianismo de esquerda?

A relevância dos princípios de livre mercado, da livre associação e da cooperação voluntária para lidar com as preocupações da esquerda atual



O liberalismo clássico e o movimento socialista clássico do começo do século 19 tinham raízes comuns no Iluminismo. O liberalismo de Adam Smith, David Ricardo e outros economistas políticos clássicos era essencialmente um ataque esquerdista aos privilégios econômicos das oligarquias estabelecidas whig e ao mercantilismo dos detentores do dinheiro.

Com a derrota dos senhores de terras e dos mercantilistas whig no século 19 pelos industrialistas, que assumiram posições predominantes dentro do estado, o liberalismo clássico gradualmente tomou as feições de uma apologia aos interesses do capital industrial. Mesmo assim, as linhagens de esquerda — e até socialistas — do pensamento de livre mercado continuaram a sobreviver às margens do liberalismo.

Thomas Hodgskin, liberal clássico que escreveu dos anos 1820 até os anos 1860, também era um socialista que considerava rendas, lucros e juros como retornos monopolísticos sobre direitos de propriedade artificiais. Josiah Warren, Benjamin Tucker e outros individualistas americanos também defendiam um socialismo de livre mercado em que a competição sem restrições destruiria rendas, lucros e juros e garantiria que o “pagamento natural do trabalho” fosse seu produto. Muitos anarquistas individualistas associados com o jornal Liberty, de Benjamin Tucker, eram próximos a associações trabalhistas e socialistas radicais, como os Kinghts of Labor, a International Workingmen’s Association e a Western Federation of Miners.

Essa tendência dentro do libertarianismo também estava dentro da esquerda cultural, com laços fortes com movimentos pela abolição da escravidão e pela igualdade racial, pelo feminismo e pela liberdade sexual.

Com os conflitos de classe do final do século 19, a retórica de “livre mercado” e “livre empresa” dentro da política americana passou a ser associada cada vez mais à defesa militante do poder do capital corporativo contra os movimentos populistas trabalhistas e agrários radicais. Ao mesmo tempo, a divisão interna no movimento anarquista entre comunistas e individualistas deixou os individualistas suscetíveis à colonização pela direita. No século 20, o “libertarianismo de livre mercado” veio a ser associado a defesas direitistas do capitalismo por Ludwig von Mises e Ayn Rand. A tradição individualista sobrevivente foi perdendo o seu caráter esquerdista, pró-trabalhista e culturalmente socialista, adotando características da direita.

No entanto, sobreviveram algumas tradições da esquerda dentro do libertarianismo americano. Em particular, georgistas e semi-georgistas como Bolton Hall, Albert Jay Nock e Ralph Borsodi continuaram a atuar até meados do século 20.

Nós, na esquerda libertária, consideramos absolutamente perverso que as ideias libertárias de livre mercado, uma doutrina que se originou como ataque aos privilégios econômicos de latifundiários e grandes mercadores, tenha sido cooptado e transformado numa defesa do poder estabelecido da plutocracia. O uso do “livre mercado” como ideologia legitimizadora para o capitalismo corporativo e o crescimento dos propagandistas “libertários” é uma perversão tão grande dos princípios de livre mercado quanto os símbolos e a retórica dos regimes stalinistas foram uma perversão dos valores do movimento dos trabalhadores.

O sistema industrial capitalista que os libertários têm defendido desde o século 19 nunca se aproximou de um livre mercado. O capitalismo, enquanto sistema histórico que surgiu no começo da Idade Moderna, é, em vários aspectos, um desenvolvimento direto do feudalismo bastardo do final da Idade Média. Foi fundado na dissolução dos campos abertos, no cercamento dos comuns e em outras expropriações dos camponeses. Na Inglaterra, não só a população rural foi transformada em um proletariado destituído e empurrados para o trabalho assalariado, mas sua liberdade de associação e de ir e vir foram criminalizadas pelo estado policial durante as primeiras duas décadas do século 19.

A nível global, o capitalismo se tornou um sistema mundial através da ocupação colonial, da expropriação e da escravização de grande parte do Sul. Dezenas e centenas de milhões de camponeses foram expulsos de suas terras pelos poderes coloniais e levados ao mercado de trabalho assalariado. Suas propriedades prévias foram transformadas em plantações voltadas para o comércio, em uma reprise do que havia acontecido durante os cercamentos na Grã-Bretanha. Não só na época colonial, mas também nos períodos pós-coloniais, a terra e os recursos naturais do Terceiro Mundo foram cercados e saqueados pelos interesses empresariais do Ocidente. A concentração atual das terras no Terceiro Mundo nas mãos das elites latifundiárias e de petróleo e recursos minerais nas mãos de corporações ocidentais são legado direto de 400 anos de roubos coloniais e neocoloniais.

Nós, da esquerda libertária, como entendemos esse termo no C4SS, queremos retomar os princípios de livre mercado das mãos dos apologistas dos grandes negócios e da plutocracia e colocá-lo de volta a serviço de seu propósito original: um ataque radical aos interesses econômicos e às classes privilegiadas de nosso tempo. Se o liberalismo clássico de Smith e Ricardo era um ataque ao poder dos oligarcas whigs e dos interesses empresariais, nosso libertarianismo de esquerda é um ataque a seu correspondente contemporâneo: o capitalismo financeiro global e as corporações transnacionais. Nós repudiamos o papel do libertarianismo mainstream na defesa do capitalismo corporativo do século 20 e sua aliança com o conservadorismo.

Nós, da esquerda libertária, também queremos demonstrar a relevância dos princípios de livre mercado, da livre associação e da cooperação voluntária para lidar com as preocupações da esquerda atual: a injustiça econômica, a concentração e a polarização da riqueza, a exploração do trabalho, a poluição, o desperdício e a poluição, o poder corporativo e as formas estruturais de opressão, como o racismo, o sexismo, a homofobia e a transfobia.

Onde ocorreram roubos ou injustiças, nós nos colocamos radicalmente pela restituição total. Onde persiste o poder das elites neofeudais, nós tratamos suas terras como legítimas propriedades daqueles cujos antepassados as usaram e cultivaram. Os camponeses despejados de terras para dar lugar às colheitas da Cargill e da ADM devem ter suas terras restauradas. As haciendas na América Latina devem ser abertas para apropriação imediata dos camponeses sem terras. Os direitos de propriedade a terras vagas e não utilizadas nos Estados Unidos e em outras sociedades colonizadoras devem ser anulados. Em casos em que as terras originalmente tomadas por esses títulos ilegítimos são cultivadas atualmente por arrendatários ou locatários, o título de propriedade deve ser transferido para eles. Direitos de propriedade de corporações a minas, florestas e campos petrolíferos obtidos através de roubos coloniais devem ser declarados nulos.

Uma lista mínima de demandas do libertarianismo de esquerda deve incluir a abolição de todos os direitos de propriedade artificiais, de toda a escassez artificial, todos os monopólios, barreiras de entrada, cartéis regulatórios e subsídios através dos quais toda a lista de corporações que compõe a Fortune 500 adquire seus lucros. Deve incluir o fim a todos os títulos de proprietários ausentes a terras vagas, de todos os monopólios de “propriedade intelectual” e todas as restrições à livre competição na emissão de moeda e crédito ou da adoção de todos os meios de troca escolhido pelas partes de uma transação. Por exemplo, a abolição de patentes e marcas registradas acabaria com todas as barreiras que impedem que as empresas terceirizadas pela Nike na Ásia produzam imediatamente tênis idênticos e os vendam à população local a uma pequena fração de seu preço tabelado. Seria um fim imediato a todas as restrições à produção e venda de versões concorrentes de medicamentos sob patentes, com frequência por até 5% do preço. Queremos que a fração dos preços dos bens e serviços que consista de rendas advindas de propriedades artificiais de ideias ou técnicas — que compõem a maior parte do preço total em muitos casos — suma face à competição.

Nosso programa também deve incluir um fim a todas as barreiras artificiais ao auto-emprego, aos negócios caseiros, à construção de casas por conta própria e a outros meios de subsistência de baixo custo — que incluem leis de licenciamento, zoneamento e regulamentações de segurança. Deve também incluir um fim a todas as restrições ao direito do trabalho se organizar e a negar seus serviços sob qualquer circunstância e organizar boicotes. Também devemos defender um fim a todos os privilégios legais que dão aos sindicatos estabelecidos o direito de restringir greves sem aviso prévio e outras ações diretas empreendidas pelos trabalhadores.

No caso da poluição e do esgotamento dos recursos naturais, o programa libertário de esquerda deve incluir o fim de todo acesso à terra pelas indústrias extrativas (isto é, a união entre o Bureau of Land Management dos Estados Unidos e as empresas de exploração de petróleo, mineiras, madeireiras e pecuárias), o fim de todos os subsídios ao consumo de energia e ao transporte (incluindo um fim aos subsídios ao transporte aéreo e rodoviário e o fim das expropriações para dar lugar a aeroportos e estradas), o fim das expropriações para dar lugar a oleodutos e gasodutos, a eliminação de todos limites legais de responsabilização penal para corporações por derramamentos de óleo e outros tipos de poluição, o fim da doutrina que estipula que padrões regulatórios mínimos substituem padrões mais severos de responsabilização penal do direito comum e uma restauração da responsabilidade ilimitada (que existia sob o direito comum) para atividades poluidoras como a fraturação hidráulica e a mineração por remoção do topo da montanha. E deve incluir, obviamente, o papel do estado militar americano na garantia do acesso estratégico a bacias petrolíferas no exterior ou em manter as vias marítimas abertas para os navios petroleiros.

O capitalismo corporativo e a opressão de classes sobrevivem através da intervenção estatal em benefício dos privilegiados e poderosos. Os mercados livres verdadeiros, a cooperação voluntária e a associação livre agem como dinamite na base desse sistema de opressão.

Qualquer programa libertário de esquerda deve incluir uma preocupação com a justiça social e com o combate da opressão estrutural. Isso significa, obviamente, um fim a toda a discriminação estatal com base em raça, gênero ou orientação sexual. Mas significa também muito mais.

Como libertários, nós nos opomos a todas as restrições legais à liberdade de associação, inclusive a leis contra a discriminação por empresas privadas. Mas devemos apoiar com entusiasmo a ação direta para combater as injustiças na esfera social. Historicamente, as leis anti-discriminação estatais serviram apenas para codificar, relutantemente após mudanças sociais, os ganhos obtidos através de ações diretas como os boicotes a ônibus, os protestos passivos em lanchonetes e a rebelião em Stonewall. Nós devemos apoiar o uso da ação direta, da pressão social, dos boicotes e da solidariedade para combater formas estruturais de opressão como o racismo e a cultura do estupro, desafiando as normas internalizadas que perpetuam esses sistemas de coerção.

Ao lidar com todas as formas de injustiça, devemos usar uma abordagem interseccional. Isso inclui o repúdio a práticas da velha esquerda, que consideram preocupações com raça e gênero como questões “divisivas” ou como algo a ser discutido “mais tarde”, para que se mantenha a unidade de classe. Inclui também o repúdio de movimentos de justiça de raça e gênero ocupados por profissionais da alta classe média, que enfatizam somente a chegada de negros e mulheres em “espaços de poder” e em “gabinetes e salas de reunião mais parecidos com o nosso país”, deixando intocado o poder desfrutado por esses espaços, gabinetes e salas de reunião. O ataque a uma forma de privilégio não deve ser visto como prejudicial a outras lutas; ao contrário, todas as lutas são complementares e se reforçam mutuamente.

A preocupação especial às necessidades interseccionais dos nossos companheiros menos privilegiados em cada movimento pela justiça — mulheres e negros na classe trabalhadora; mulheres pobres e trabalhadoras, mulheres negras, mulheres transgênero e trabalhadoras do sexo dentro do feminismo; mulheres, pobres e trabalhadores dentro do movimento anti-racista; etc — não divide esses movimentos. Na verdade, os fortalece contra as tentativas da classe dominante de dividi-los e conquistá-los através da exploração de suas divisões internas. Por exemplo, os grandes donos de terras derrotaram os sindicatos de pequenos fazendeiros locatários do sul dos Estados Unidos nos anos 1930 ao estimular e explorar as tensões raciais dentro de seu movimento, que causaram sua divisão em sindicatos separados de brancos e negros. Qualquer movimento de justiça de classe, raça ou sexo que ignore a interseção de múltiplas formas de opressão entre seus membros e deixe de prestar atenção às necessidades especiais dos menos privilegiados está vulnerável ao mesmo tipo de oportunismo. Em última análise essa atenção a preocupações interseccionais deve incluir a abordagem de espaços de segurança que cria uma atmosfera de debate genuíno, sem perseguições e insultos deliberados.

Os libertários — com frequência, por sua própria culpa — são considerados por muitos somente como “conservadores que fumam maconha”, adeptos de uma ideologia insular de homens de classe média de startups de tecnologia. Muitas das maiores publicações e comunidades online libertárias na internet têm a tendência reflexiva a defender as grandes empresas contra ataques de trabalhadores e consumidores, os senhorios contra os locatários, o Walmart contra Main Street, rejeitando quaisquer críticos como inimigos do livre mercado e tratando as corporações como representantes legítimas dos princípios de mercado. Têm também uma tendência paralela a rejeitar todas as preocupações de justiça pessoal e sexual como “coletivistas”. O resultado é um movimento considerado pelos pobres, trabalhadores, mulheres e negros como irrelevante para suas preocupações. Enquanto isso, os homens brancos de 20 e poucos anos em empregos de classe média explicam a falta de mulheres e minorias nas fileiras de seus movimentos como referência a seu “coletivismo natural” e citam o ensaio Isaiah’s Job de Nock uns para os outros.

Nós, da esquerda libertária, não queremos ser relegados às catacumbas ou sermos os equivalentes modernos dos jacobinos, que se sentavam para tomar café e discutir sobre Bonnie Prince Charlie. Nós não queremos reclamar sobre como a sociedade está se acabando enquanto a maior parte das pessoas que luta para mudar a realidade para melhor nos ignora. Queremos que nossas ideias estejam no centro das lutas em todos os lugares pela justiça e por uma vida melhor. E só podemos fazer isso tratando as preocupações reais de pessoas reais como se dignas de respeito e mostrando como nossas ideias são relevantes. É isso que pretendemos fazer.

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A Aliança da Esquerda Libertária é uma coalizão multi-tendência de mutualistas, agoristas, voluntaristas, geolibertários, esquerdistas-rothbardianos, libertários verdes, anarquistas dialéticos, minarquistas radicais e outros da esquerda libertária, unidos por uma oposição ao estatismo e ao militarismo, à intolerância cultural (incluindo o sexismo, o racismo e a homofobia) e ao capitalismo corporativista predominante, falsamente chamado de livre mercado; bem como por uma ênfase na educação, ação direta e construção de instituições alternativas, em vez de políticas eleitorais, como nossa principal estratégia para alcançar a liberação.

Por Kevin Carson
15 de junho de 2014
Traduz.: Erick Vasconcelos
Em: C4SS