sábado, 5 de janeiro de 2019

Thomas Hodgskin Versus Jeremy Bentham

Smith discute a crítica de Thomas Hodgskin do utilitarismo e sua afirmação de que a principal preocupação dos legisladores é preservar seu próprio poder.



No último ensaio, discuti como Jeremy Bentham repudiava os direitos naturais em favor de uma doutrina conhecida como positivismo jurídico, segundo a qual o governo é a única fonte e criador dos direitos. O legislador, de acordo com Bentham, deveria usar o padrão utilitarista de “a maior felicidade para o maior número” ao avaliar a conveniência de determinadas leis.

No The Natural and Artificial Right of Property Contrasted (1832), Thomas Hodgskin atacou os direitos de propriedade "artificiais" defendidos por Jeremy Bentham e seus seguidores, enquanto defendia os direitos de propriedade "naturais" de John Locke e seus seguidores. Na medida em que o governo se preocupa em promover o bem público, só pode fazê-lo respeitando os direitos naturais dos indivíduos; não há outro padrão viável. Assim, Hodgskin procurou preservar a forma tradicional do liberalismo clássico contra as inovações destrutivas de Bentham.

Os legisladores geralmente acreditam que são abençoados com a autoridade moral para decretar o que é justo ou injusto e com a sabedoria para determinar o que é bom para a sociedade como um todo. Tais crenças, alega Hodgskin, são "arrogantes". Pelo contrário, "a sociedade pode existir e prosperar sem o legislador e, consequentemente, sem o cobrador de impostos".

The Natural and Artificial Right of Property Contrasted foi escrito em 1829 como uma série de oito cartas a Lord Brougham (endereçado a ele, como diz Hodgskin, "sem permissão") e depois publicado em 1832 com algumas "alterações verbais". Lord Brougham, que se tornou lorde chanceler em 1830, foi significativo por várias razões.

Primeiro, Brougham era altamente simpático ao utilitarismo benthamita (embora Bentham pareça não ter gostado dele pessoalmente). Em segundo lugar, Brougham era conhecido como um defensor das causas liberais. Em terceiro lugar, Brougham fora nomeado para liderar uma comissão cujo propósito era recomendar mudanças no sistema jurídico inglês que o tornassem mais eficiente e equitativo.

Assim, ao criticar Brougham, Hodgskin estava se dirigindo não a um tory conservador, mas a um reformador liberal cujos pontos de vista eram de algum modo semelhantes aos seus. O verdadeiro alvo de Hodgskin, no entanto, não era uma pessoa única, mas a teoria do utilitarismo benthamita, segundo a qual os legisladores deveriam promover a maior felicidade para o maior número de pessoas.

Hodgskin critica a noção de que melhorias significativas podem ser feitas através da reforma gradual das leis existentes. Isso faria pouco ou nada para promover a causa da liberdade e poderia até piorar as coisas. A maioria dos legisladores é composta de advogados que não conhecem praticamente nada sobre leis sociais e econômicas, de modo que, ao alterar antigas leis, eles normalmente geram novos problemas.
"Quanto mais eles estragam e consertam, mais numerosos são os buracos. Sem saber nada de princípios naturais, eles parecem imaginar que a sociedade - a parte mais gloriosa da criação, se o homem individual for o mais nobre dos animais - deriva sua vida e força somente deles. Eles o consideram como um bebê, a quem devem se dedicar e promover a existência saudável; mas enquanto eles estão planejando como criar e vestir suas lindas carícias! Tornou-se um gigante, a quem eles só podem controlar até onde ele consente usar seus grilhões."
Antes de o legislador tentar consertar a sociedade com ajustes legais, ele deve primeiro entender a natureza da ordem social. Mas isso não é o que o legislador quer ouvir, então ele “age antes de entender”. O legislador, ignorante da verdadeira natureza da ordem social, "avança sob a influência de suas paixões e instintos animais, como a toupeira, e é tão cego."

A teoria benthamita, de acordo com Hodgskin, entrega ao governo um cheque em branco para aprovar qualquer legislação, desde que os legisladores acreditem, ou professem acreditar, que tal legislação promove a utilidade social. Ao contrário do liberalismo tradicional, que via o governo como um mal necessário, os utilitaristas viam o governo como um poder potencialmente benéfico que pode ser usado para promover a maior felicidade para o maior número possível de pessoas.
"Os senhores Bentham e James Mill, ambos ansiosos por exercer o poder da legislação, representam-na como uma divindade benéfica, que reprime nossas paixões e desejos naturalmente malignos (eles adotam a doutrina dos sacerdotes, que os desejos e paixões do homem são naturalmente maus) que verifica a ambição, vê a justiça feita e encoraja a virtude. Características deliciosas! - que têm a única culpa de serem contraditos por todas as páginas da história."
Hodgskin é altamente cético, para dizer o mínimo, sobre a teoria do governo benthamita. A primeira prioridade dos legisladores é promover seus próprios interesses, e não o bem público, e os benthamitas simplesmente fornecem a eles uma justificativa conveniente para fazer isso.
"Para mim, esse sistema [benthamita] parece tão travesso quanto absurdo. As doutrinas, que concordam muito bem com a prática dos legisladores, cortam com demasiada segurança todos os nós gordos da legislação, para não serem prontamente adotadas por todos aqueles que, embora descontentes com uma distribuição de poder, na qual nenhuma parte lhes cai, estão ansiosos. para se tornarem guardiões tutelares da felicidade da humanidade. Eles levantam a legislação fora do nosso alcance e garantem a censura. O homem, naturalmente sem direitos, pode ser experimentado, aprisionado, expatriado ou mesmo exterminado, como o legislador desejar. Sendo a vida e a propriedade seu presente, ele pode retomá-las com prazer; e, portanto, ele nunca classifica as execuções e massacres em grande escala, ele comanda continuamente, com assassinato - nem a apropriação forçada da propriedade que ele sanciona, sob o nome de impostos, dízimos, etc, com assalto ou roubo de rodovia. A doutrina de Filmer sobre o direito divino dos reis era benevolência racional, comparada com a afirmação monstruosa de que 'todo o direito é factício e só existe pela vontade do legislador'."
Hodgskin aponta a principal fraqueza da agenda utilitarista, a saber, que a “maior felicidade para o maior número” não pode ser medida ou calculada. É um padrão vago e, em última análise, sem sentido, e é por isso que é tão amado pelos legisladores, que nunca podem ser chamados para prestar contas de suas ações. Não há “dúvida de que as faculdades dos indivíduos, admiravelmente adaptadas para garantir sua própria preservação, não são competentes para medir a felicidade das nações”. Hodgskin continua:
"Admitindo, portanto, que o legislador deve olhar para o bem geral, a impossibilidade de que qualquer indivíduo possa determinar o que o promoverá, leva diretamente à conclusão de que não deveria haver legislação. Se o maior princípio de felicidade for o único adequado que justifique a legislação, e se esse princípio for adequado apenas à Onisciência - homem, não tendo meios de medi-lo, não pode haver justificativa de todas as artimanhas bem adaptadas do Sr. Bentham, que ele chama leis civis e penais."
Em oposição aos direitos estabelecidos pelo decreto governamental, Hodgskin defende o direito natural de propriedade. Depois de citar longas passagens do Second Treatise of Government de John Locke, e depois de apresentar sua própria versão dos direitos lockeanos, Hodgskin prossegue:
"Eu vejo sobre um direito de propriedade - o direito dos indivíduos, de ter e de possuir, de seu próprio uso e deleites separados e egoístas, o produto de sua própria indústria, com o poder de dispor livremente de tudo isso na maneira mais agradáveis ​​a si mesmos, como essenciais para o bem-estar e até para a continuação da existência da sociedade."
A análise da legislação de Thomas Hodgskin antecipa a moderna escola econômica conhecida como "teoria da escolha pública", que procura entender o comportamento político como decorrente da busca do interesse próprio por parte dos governantes. Como diz Hodgskin: "Vamos olhar mais de perto quem é o legislador e qual é o seu objetivo ao fazer leis".

Assim como Adam Smith havia colocado o interesse próprio como um princípio explicativo na economia, Thomas Hodgskin estende esse método ao domínio da política. O impulso do interesse próprio, tanto na política quanto na economia, está em toda parte operativo. É ingênuo supor que os legisladores não agem pelos mesmos motivos que os outros homens. Embora a lei positiva seja frequentemente defendida como necessária para manter os direitos de propriedade, na verdade ela é projetada para permitir que os governantes mantenham e expandam seu próprio poder:
"Quando inquirimos, deixando de lado todas as teorias e suposições, no fim mantido em vista pelos legisladores, ou examinamos quaisquer leis existentes, descobrimos que o primeiro e principal objetivo proposto é preservar o domínio irrestrito da lei sobre as mentes e corpos da humanidade. Pode me ser simplicidade, mas eu protesto que não vejo ansiedade em preservar o direito natural de propriedade, mas muito em impor a obediência ao legislador. Nenhuma miséria, de fato, é considerada um preço muito alto a pagar por sua supremacia e pela quieta submissão do povo. Para alcançar este fim, muitos indivíduos e até mesmo nações foram extirpadas. Perece o povo, mas viva a lei, sempre foi a máxima dos mestres da humanidade. Por mais que nos digam, nos dizem continuamente, o domínio da lei, não o direito natural de propriedade, deve ser mantido."
O governo é essencialmente uma instituição exploradora. Lei é o mecanismo pelo qual aqueles no governo, que não produzem nada, expropriam a propriedade dos outros. “Nossos líderes não inventam nada além de novos impostos e não conquistam nada além dos bolsos de seus súditos.” Leis são feitas por aqueles que expropriam a riqueza que foi criada por outros.
"Leis sendo feitas por outros que não o trabalhador, e sendo sempre destinadas a preservar o poder daqueles que as fazem, seu grande objetivo principal por muitas eras, foi, e ainda é, permitir que aqueles que não são trabalhadores se apropriarem da riqueza para si mesmos. Em outras palavras, o grande objetivo do direito e do governo tem sido e é, estabelecer e proteger uma violação desse direito natural de propriedade que eles são descritos em teoria como sendo destinados a garantir. Esse propósito principal e princípio da legislação é o crime paterno, do qual flui continuamente todo o roubo e a fraude, toda a vaidade e a fraude, que atormentam a humanidade, pior do que a pestilência e a fome."
Diante desse ponto de vista, não surpreende que Hodgskin veja os impostos como “o roubo paterno, dos quais fluem todos os outros roubos”. Os impostos transferem forçosamente a riqueza dos produtores para os legisladores improdutivos, que justificam sua expropriação por meio da lei. No entanto, Hodgskin acredita que o objetivo final dos legisladores não é a riqueza em si, mas a manutenção e o exercício do poder sobre os outros. “Aqueles que fazem leis”, diz ele, “apropriam-se da riqueza para garantir o poder”. Os impostos, então, são um meio necessário para a manutenção do poder político, de modo que a lei, acima de tudo, deve impor a tributação compulsória.
"Um dos primeiros objetos então da lei, subordinado ao grande princípio de preservar seu domínio irrestrito sobre nossas mentes e corpos, é dar uma receita suficiente ao governo. Quem pode descrever o repugnante servilismo com que todas as classes se submetem para ser esfolados pelas exigências do coletor de impostos, em toda sorte de falsos pretextos, quando suas exigências não podem ser evitadas fraudulentamente? Quem está familiarizado com todas as restrições impostas à empresa honesta e louvável; as penalidades infligidas a esforços íntegros e honrosos? Que pena é igual à tarefa de descrever com precisão todas as vexações e a contínua miséria, amontoadas em todas as classes trabalhadoras da comunidade, sob o pretexto de que é necessário arrecadar uma receita para o governo?"
Os impostos infligiram mais sofrimento à humanidade do que desastres naturais.
"[O legislador] infligiu à humanidade, por séculos, as misérias das leis de renda - maiores do que as de pestilência e fome, e às vezes produzindo ambas as calamidades... As leis de receita nos atendem a cada passo. Eles amargam nossas refeições e perturbam nosso sono. Eles excitam a desonestidade e checam a empresa. Eles impedem a divisão do trabalho e criam divisão de interesses. Eles semeiam conflitos e inimizades entre os homens da cidade e irmãos; e eles frequentemente levam a assassinatos, não menos atrozes porque eles são cometidos em batalha com contrabandistas, ou consumados na forca. A preservação do governo, diz-se, deve ser comprada em qualquer sacrifício; e é impossível enumerar os estatutos vexatórios e as penas cruéis pelas quais se busca que sua preservação seja alcançada. O governo, como tal, não produz nada, e todas as suas receitas são cobradas violando o direito natural de propriedade. Isso coloquei como o primeiro ponto visado por todas as leis."
Há muito mais para o The Natural and Artificial Right of Property Contrasted do que indiquei aqui, mas essa visão geral deve dar uma ideia de seus temas básicos. Este notável livro, embora virtualmente desconhecido até entre os libertários, merece muito mais atenção do que até agora recebeu.



Por George H. Smith 
3 de Julho de 2012
Em: https://www.libertarianism.org/publications/essays/excursions/thomas-hodgskin-versus-jeremy-bentham

Ataque de Jeremy Bentham aos direitos naturais


Smith discute o utilitarismo de Jeremy Bentham e por que isso alarmou os defensores dos direitos naturais.



Nos meus últimos quatro ensaios, discuti as ideias de Thomas Hodgskin. Nenhuma discussão de Hodgskin seria completa sem considerar seu grande clássico, The Natural and Artificial Right of Property Contrasted (1832). Mas para entender e apreciar este livro, precisamos saber algo sobre a doutrina que Hodgskin estava criticando, a saber, o utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832). Vou, portanto, dedicar este ensaio a Bentham e depois retomar minha discussão sobre Hodgskin no próximo ensaio.

A teoria dos direitos naturais era a doutrina revolucionária dos séculos XVII e XVIII, sendo usada para justificar a resistência a leis injustas e à revolução contra os governos tirânicos. Essa foi a principal razão pela qual Edmund Burke atacou os direitos naturais - ou "direitos abstratos", como os chamou - tão veementemente em sua famosa polêmica contra a Revolução Francesa, Reflections on the Revolution in France (1790). Burke mais tarde condenou a Constituição francesa de 1791, que exibia uma forte influência americana, como um "resumo da anarquia".

Semelhantemente, Jeremy Bentham, em sua crítica à Declaração de Direitos Francesa (1789), chamou os direitos naturais de “falácias anárquicas”, porque (como Burke) ele acreditava que nenhum governo poderia possivelmente atender aos padrões exigidos pela doutrina dos direitos naturais. Anteriormente, um crítico liberal da Revolução Americana, o clérigo inglês Josiah Tucker, argumentara que o sistema lockeano de direitos naturais "é um demolidor universal de todos os governos, mas não o construtor de nenhum".

O medo de que os defensores dos direitos naturais fomentassem uma revolução na Grã-Bretanha, como fizeram na América e na França, alarmou os governantes britânicos, levando-os a instituir medidas repressivas. Portanto, não é de surpreender que a teoria dos direitos naturais tenha sido subterrânea, por assim dizer, durante a longa guerra com a França. Mesmo depois da volta da paz, em 1815, pairou uma nuvem de suspeitas sobre esse modo de pensar. Os direitos naturais eram comumente associados aos jacobinos franceses - Robespierre e outros que haviam instigado o Reino do Terror - de modo que um defensor dos direitos naturais corria o risco de ser condenado como simpatizante francês, jacobino ou (pior ainda) anarquista.

Assim, o liberalismo britânico adotou uma nova face depois de 1815, quando uma atmosfera de paz ressuscitou o movimento por reformas políticas e econômicas, e como muitos liberais da classe média adotaram uma base não revolucionária para as liberdades econômicas e civis. A principal teoria a esse respeito, que se tornaria conhecida como "utilitarismo", foi desenvolvida por Jeremy Bentham e popularizada por seu protegido escocês James Mill (o pai de John Stuart Mill) e por muitos outros discípulos.

Bentham não originou o princípio utilitarista de “a maior felicidade para o maior número”; Encontramos expressões semelhantes em vários filósofos do século XVIII, como Hutcheson, Helvetius e Beccaria. Para nosso propósito, a característica mais significativa do utilitarismo de Bentham foi a rejeição inequívoca dos direitos naturais.

Os direitos naturais, de acordo com Bentham, são "tolices simples: direitos naturais e imprescritíveis, absurdos retóricos, - absurdos sobre pernas de pau" os chamados direitos morais e naturais são ficções maliciosas e falácias anárquicas que encorajam desassossego civil, desobediência e resistência às leis, e revolução contra os governos estabelecidos. Somente os direitos políticos, aqueles direitos positivos estabelecidos e impostos pelo governo, têm “qualquer significado determinado e inteligível”. Os direitos são “os frutos da lei e somente da lei. Não há direitos sem lei - nenhum direito contrário à lei - nenhum direito anterior à lei ”.

O significado de Bentham não está em sua defesa da utilidade social, do bem-estar geral ou do bem comum - pois essa ideia, seja qual for o nome a que fosse chamada, era considerada por muitos liberais clássicos anteriores como o propósito da legislação, em contradição ao seu padrão.

O problema fundamental era este: dado que a utilidade social deve ser o propósito da legislação, como pode esse objetivo bastante vago ser alcançado? Como o legislador pode saber quais medidas promoverão a maior felicidade para o maior número? A essa questão, os liberais clássicos da tradição lockeana responderam, com efeito: Respeitando os direitos naturais dos indivíduos. Assim, se a utilidade social é o objetivo geral da legislação, os direitos naturais são o padrão, ou regra, que deve ser seguido para que esse objetivo seja alcançado.

Bentham rompeu com essa tradição venerável, na qual a utilidade e os direitos eram vistos como aspectos diferentes do mesmo processo, rejeitando todo o esquema dos direitos naturais e propondo que a utilidade social servisse tanto como objetivo quanto como padrão da atividade política.

De acordo com Bentham, a “felicidade dos indivíduos, dos quais uma comunidade é composta… é o único fim que o legislador deve ter em vista [e] o único padrão, de acordo com o qual cada indivíduo deve, tanto quanto depende do legislador, a ser feito para moldar o seu comportamento.” Os direitos naturais não são apenas uma ficção sem fundamento, que é incompatível com uma metodologia empírica, mas eles são uma ficção altamente perigoso para arrancar, porque eles têm sido tradicionalmente usado para minar a autoridade do governos. Em suma, os direitos naturais são "linguagem terrorista".

Assim, Bentham rejeitou o método indireto dos direitos naturais, segundo o qual o legislador deveria respeitar os direitos como um meio para o fim da utilidade social. Em vez disso, o legislador deve calcular a utilidade social diretamente, avaliando o impacto de uma determinada lei sobre a maior felicidade para o maior número.

Como eu disse, isso foi um desvio significativo do pensamento liberal anterior, no qual os direitos naturais e a utilidade social eram vistos como complementares. Bentham cortou esse relacionamento amigável ao rejeitar totalmente os direitos naturais. Se uma determinada lei promove a maior felicidade para o maior número, então ela é legítima e apropriada, independentemente de como ela possa ser avaliada de uma perspectiva de direitos naturais.

Bentham acreditava que a maior felicidade para o maior número pode ser verificada por "algum cálculo ou processo de 'aritmética moral' por meio do qual podemos chegar a resultados uniformes". Mas como? A solução de Bentham veio na forma de seu cálculo hedônico, uma discussão sobre a qual ocupa uma boa parte de seu livro mais famoso, An Introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789).

Como o legislador pode calcular a maior felicidade para o maior número, medido em termos de prazer máximo e dor mínima? O procedimento de Bentham, apesar de um verniz de exatidão, é incrivelmente vago neste ponto. Depois de listar sete “circunstâncias” (intensidade, duração, certeza, fecundidade, etc.) que são relevantes para este cálculo, Bentham diz que uma “conta exata” de um ato legislativo proposto pode ser obtida determinando primeiro para um determinado indivíduo soma de “todos os valores de todos os prazeres de um lado e de todos os sofrimentos do outro”; e, em seguida, tomar uma conta" do número de pessoas que os interesses parecem estar em causa" e repetindo o mesmo cálculo "em relação a cada um".

Bentham refere-se repetidamente à quantidade e à medição de prazeres e dores, mas em nenhum lugar ele aborda os sérios problemas de lidar com o prazer e a dor quantitativamente (como se eles pudessem ser somados em uma única soma); nem explica como é possível quantificar e comparar os sentimentos subjetivos de diferentes indivíduos. (Este último problema é agora chamado de problema de comparações de utilidade interpessoal.)

O fato de que Bentham às vezes tinha dúvidas sobre seu próprio cálculo hedônico fica claro em um de seus manuscritos não publicados, onde ele tinha a dizer sobre a possibilidade de somar quantidades de felicidade entre diferentes indivíduos:
É em vão falar em acrescentar quantidades que após a adição continuarão distintas como eram antes, a felicidade de um homem nunca será a felicidade de outro homem: um ganho para um homem não é ganho para outro: você pode fingir acrescentar vinte maçãs para vinte peras, que depois de ter feito isso não poderiam ser quarenta de uma coisa, mas vinte de cada, como havia antes.
Bentham admite que seu cálculo hedônico, como a teoria dos direitos naturais, é baseado em uma ficção ou abstração irreal. Mas ele também afirma que sua ficção é "bem sucedida" porque pode funcionar como um guia prático para os legisladores.
Esta adicionalidade da felicidade de diferentes sujeitos, no entanto, quando considerada rigorosamente, pode parecer fictícia, é um postulatum sem a concessão de que todo o raciocínio político está em uma posição.
Quando Bentham aplica seu princípio de utilidade a medidas políticas, ele muitas vezes não apela para seu cálculo hedônico fictício, mas para o princípio geral de que cada indivíduo é normalmente o melhor juiz de seus próprios interesses e deve, deve, portanto, ser deixado livre para perseguir sua própria felicidade a seu modo. O reconhecimento legal deste princípio, manifestado no respeito pela liberdade individual, é a melhor maneira de promover a maior felicidade para o maior número de pessoas.

O fato de cada pessoa ser normalmente o melhor juiz de seus próprios interesses parecia tão óbvio para Bentham quanto não exigir muita justificativa. Mas havia um grave perigo à espreita nessa premissa, como seus críticos de direitos naturais foram rápidos em apontar. Eles concordaram que uma pessoa é geralmente o melhor juiz de seus próprios interesses, mas eles afirmaram que, mesmo quando este não é o caso, a pessoa tem o direito de agir de acordo com seu próprio julgamento, desde que respeite os direitos iguais dos outros.

Então, o ponto crucial era este: quem decide se uma determinada pessoa avalia seus interesses corretamente ou não - o indivíduo ou o governo? Afinal, Bentham admitiu que as pessoas podem cometer erros sobre o que promoverá sua felicidade, mas quem deve determinar quando esses erros são cometidos e quando eles não são? A teoria de Bentham sugere que tais decisões devem ser tomadas por uma autoridade legislativa, não por indivíduos, pois cabe aos legisladores calcular a maior felicidade para o maior número possível, e elas têm o poder de impor suas decisões.

Foi isso que enfureceu tanto os críticos liberais de Bentham, como Thomas Hodgskin e Herbert Spencer, e essa é a chave para entender o racha no liberalismo britânico do século XIX que foi precipitado pela imensa influência de Jeremy Bentham.

Os utilitaristas, de acordo com seus críticos, haviam minado o fundamento moral de uma sociedade livre por sua rejeição dos direitos naturais. É verdade que muitos utilitaristas tinham fortes crenças pró-liberdade. Bentham, por exemplo, era um defensor bastante consistente da economia de livre mercado, e ele não hesitou em assumir causas impopulares na área das liberdades civis (como vemos em sua oposição à pena de morte e em seu chamado para abolir as leis contra a homossexualidade). Dadas essas e outras causas liberais, o princípio da utilidade poderia, de fato, funcionar como uma arma poderosa em defesa da liberdade individual - desde que, é claro, aqueles que estavam no poder concordassem com as avaliações de utilidade social de Bentham. Mas esse era precisamente o problema.

O legislador ideal de Bentham lembrou demais seus críticos do rei filósofo de Platão - aquele planejador social sábio e benevolente que tem no coração os melhores interesses de seus súditos. Bentham orgulhava-se de seu realismo político de cabeça dura, mas esse lapso no idealismo foi severamente ridicularizado pelos defensores dos direitos naturais.

Repetidamente os críticos liberais de Bentham, mais notavelmente Thomas Hodgskin e Herbert Spencer, atacaram os utilitaristas por sua cegueira histórica e ingenuidade política. Quantas vezes, na história humana, perguntaram, os governantes políticos realmente governavam com os melhores interesses de seus súditos no coração? Nunca, ou quase nunca, eles responderam. E, dada a natureza humana, podemos esperar realisticamente que os governantes perderão magicamente suas inclinações egoístas imediatamente ao ganhar poder, renunciando a seus próprios interesses em prol do bem comum? Ou podemos esperar que os governantes se comportem como os outros mortais e continuem a perseguir seus próprios interesses através da instrumentalidade coercitiva do governo?

Bentham estava ciente desse problema e encontrou uma resposta em sua teoria da democracia. Se a franquia fosse ampliada, se as pessoas em geral pudessem eleger seus governantes, então surgiria uma identidade de interesses entre os governantes e os governados, pois as pessoas certamente nunca votariam contra seus próprios interesses.

Os críticos de direitos naturais de Bentham geralmente favoreciam a reforma democrática, mas eles não eram tão otimistas quanto às suas perspectivas. A democracia é desejável, mas não é uma cura para todos. Como muitos de seus colegas americanos, eles acreditavam que a maioria poderia tiranizar uma minoria com tanta certeza quanto qualquer tirano. De fato, eles consideravam o despotismo democrático mais perigoso do que o despotismo monárquico, já que um déspota pode ser mais facilmente resistido do que a maioria. Apenas uma teoria dos direitos naturais, que define os limites apropriados do governo, pode capacitar moralmente as minorias a exigir que seus direitos sejam respeitados, qualquer que seja a forma de governo.

E assim foi o grande debate entre as duas escolas do liberalismo clássico: os utilitaristas benthamistas versus os defensores dos direitos naturais. Esse debate, um dos mais fascinantes da história do pensamento político, prepara o terreno para nossa discussão do direito natural e artificial de propriedade de Thomas Hodgskin (1832) - um assalto frontal devastador ao utilitarismo benthamita.



Por George H. Smith 
26 de Junho de 2012
Em: https://www.libertarianism.org/publications/essays/excursions/jeremy-benthams-attack-natural-rights

A produção de Segurança

(De la production de la securité - 1849)¹
Por Gustave de Molinari 
[+Prefácio]




Introdução

Publicado originalmente no Journal des Économistes, em fevereiro de 1849, sob o título “De la production de securité”.¹

Existem duas maneiras de considerar a sociedade. De acordo com alguns, o desenvolvimento das associações humanas não está sujeito a leis inevitáveis, imutáveis. Em vez disso, essas associações, tendo sido originalmente organizadas de forma puramente artificial por legisladores primitivos, podem ser mais tarde modificadas ou refeitas por outros legisladores, de acordo com o progresso da ciência social. Nesse sistema, o governo tem um papel proeminente, porque é sobre ele — ao qual é confiado o princípio da autoridade — que recai a tarefa diária de modificar e refazer a sociedade.

Segundo outros, pelo contrário, a sociedade é um fato puramente natural. Como a terra em qual se encontra, a sociedade se move de acordo com leis gerais, preexistentes. Nesse sistema, não há, estritamente falando, uma ciência social; só há a ciência econômica, que estuda o organismo natural da sociedade e mostra como esse organismo funciona.

Propomos a examinar, dentro deste último sistema, a função e a organização natural do governo.


I.  A Ordem Natural da Sociedade

Para definir e delimitar a função do governo, é necessário investigar a essência e o objetivo da sociedade.

A que impulso natural os homens obedecem quando eles se unem, formando uma sociedade? Eles estão obedecendo ao impulso — ou, para falar de maneira mais exata, ao instinto — da sociabilidade. A raça humana é essencialmente social. Como os castores e as espécies animais de ordem mais alta em geral, os homens têm uma inclinação instintiva a viver em sociedade.

Qual é a razão do surgimento desse instinto?

O homem tem muitas necessidades, cuja satisfação promove a sua felicidade depende e cuja não satisfação provoca o seu sofrimento. Sozinho e isolado, ele poderia satisfazer apenas de forma incompleta e insuficiente essas incessantes necessidades. O instinto da sociabilidade o aproxima dos seus semelhantes e o leva a se comunicar com eles. Portanto, impelida pelo interesse próprio dos indivíduos que se aproximaram, uma certa divisão do trabalho é estabelecida, necessariamente seguida por trocas. Em suma, vemos uma organização emergir, por meio da qual o homem pode mais completamente satisfazer as suas necessidades do que poderia ao viver em isolamento.

Tal organização natural é chamada de sociedade.

O objetivo da sociedade, portanto, é a mais completa satisfação das necessidades humana. A divisão do trabalho e o trocas são os meios pelos quais isso é atingido.

Entre as necessidades humana, há um tipo particular que tem um papel enorme na história da humanidade — a saber, a necessidade de segurança.

Que necessidade é essa?

Quer vivam em isolamento ou em sociedade, os homens estão, sobretudo, interessados na preservação da sua existência e dos frutos do seu trabalho. Se o senso de justiça fosse universalmente prevalente na Terra; se, consequentemente, cada homem se restringisse a trabalhar e a trocar os frutos do seu trabalho, sem desejar tomar, por meio da violência ou da fraude, os frutos do trabalho dos outros homens; se todos possuíssem, em suma, um horror instintivo a qualquer ato danoso às outras pessoas, é certo que a segurança existiria naturalmente sobre a Terra e que nenhuma instituição artificial seria necessária para estabelecê-la. Infelizmente, as coisas não são dessa maneira. O senso de justiça parece ser o pré-requisito de apenas alguns poucos temperamentos eminentes e excepcionais. Entre as categorias de pessoas primevas, existe apenas em um estado rudimentar. Daí os inumeráveis atentados criminosos, desde o começo do mundo, desde os dias de Caim e Abel, contra a vida e a propriedade dos indivíduos.

Daí também o porquê da criação de estabelecimentos cuja finalidade é a de garantir a todos a posse pacífica da sua pessoa e dos seus bens.

Esses estabelecimentos foram chamados de governos.

Em todo lugar, mesmo entre as tribos menos esclarecidas, nós encontramos um governo - tão universal e urgente, é a necessidade por segurança provida por um governo.

Em todos os lugares, os homens resignam-se aos sacrifícios mais extremos, em vez de ficarem sem governo e, portanto, com segurança - sem perceberem que ao fazê-lo, julgam mal suas alternativas.

Suponha-se que um homem encontrasse a sua pessoa e os seus meios de sobrevivência incessantemente ameaçados; a sua primeira e constante preocupação não seria a de proteger-se dos perigos que o cercam? Essa preocupação, esses esforços, esse trabalho, necessariamente, absorveriam grande porção do seu tempo, assim como as faculdades mais energéticas e ativas da sua inteligência. Em consequência, tendo a sua atenção dividida, ele poderia apenas dedicar insuficientes e incertos esforços à satisfação de outras necessidades.

Se a esse homem for solicitado que abra mão de uma porção considerável do seu tempo e do seu trabalho para alguém que assuma a responsabilidade de garantir a posse pacífica da sua pessoa e dos seus bens, não seria vantajoso que ele aceitasse essa barganha?

Ainda assim, obviamente, não seria menos do que o seu interesse procurar a sua segurança ao menor preço possível.


II. Competição em Segurança?

Se existe uma verdade bem estabelecida na economia política, é esta:

Que em todos os casos, para todas as mercadorias que servem à satisfação das necessidades tangíveis ou intangíveis do consumidor, é do maior interesse dele que o trabalho e o comércio permaneçam livres, porque a liberdade do trabalho e do comércio tem, como resultado necessário e permanente, a redução máxima do preço.

E também esta:

Que os interesses do consumidor de qualquer mercadoria devem sempre prevalecer sobre os interesses do produtor.

Assim, ao seguirmos esses princípios, chegamos a esta rigorosa conclusão:

Que a produção de segurança deveria, nos interesses dos consumidores dessa mercadoria intangível, permanecer sujeita à lei da livre concorrência.

De onde se segue:

Que nenhum governo deveria ter o direito de impedir que outro governo entrasse em competição com ele ou de requerer que os consumidores adquirissem exclusivamente os seus serviços.

Todavia, eu devo admitir que, até o presente momento, tem-se evitado chegar a essa rigorosa implicação lógica do princípio da livre concorrência.

O Sr. Charles Dunoyer, um economista que fez mais do que qualquer outro para estender a aplicação do princípio da liberdade, pensa “que as funções do governo não poderão nunca cair no âmbito da atividade privada”.²

Aqui há uma citação de uma clara e óbvia exceção do princípio da livre concorrência.

Essa exceção é ainda mais notável por ser única.

Indubitavelmente, podemos encontrar economistas que estabelecem as mais numerosas exceções a esse princípio; mas nós podemos enfaticamente afirmar que estes não são puros economistas. Os verdadeiros economistas, em geral, estão em concordância: por um lado, com a ideia de que o governo deveria restringir-se à garantia de segurança aos seus cidadãos; e, por outro, com a ideia de que a liberdade do trabalho e do comércio deveria, em tudo o mais, ser total e absoluta.

Mas por que deveria existir uma exceção relativa à segurança? Que especial razão há para que a produção de segurança não possa ser relegada à livre concorrência? Por que deveria ela estar sujeita a um princípio diferente e organizada de acordo com um diferente sistema?

Nesse ponto, os mestres da ciência silenciam, e o Sr. Dunoyer, que claramente notou essa exceção, não investiga os fundamentos nos quais ela é baseada.


III. A Segurança é Uma Exceção?

Por consequência, nós somos levados a nos perguntar se essa exceção é bem fundamentada aos olhos do economista.

É uma ofensa à razão acreditar que uma lei natural bem estabelecida possa admitir exceções. Uma lei natural precisa ser válida em todos os lugares e sempre — ou ela é uma lei inválida. Não posso acreditar, por exemplo, que a lei universal da gravidade, a qual governa o mundo físico, seja suspensa em alguma instância ou em qualquer ponto do universo. Eu considero que as leis econômicas sejam comparáveis com as leis naturais; e eu tenho tanta convicção no princípio da divisão do trabalho quanto tenho na lei universal da gravitação. Acredito que, embora esses princípios possam ser perturbados, eles não admitem exceção.

No entanto, se for esse o caso, a produção de segurança não deve ser removida da jurisdição da livre concorrência; e, se ela for removida, a sociedade como um todo sofre uma perda.

Ou isso é lógico e verdadeiro, ou os princípios sobre os quais a ciência econômica está baseada são inválidos.


IV. As Alternativas

Portanto, foi demonstrado a priori, àqueles de nós que creem nos princípios da ciência econômica, que a exceção indicada acima não é justificada e que a produção de segurança, como a de qualquer outra coisa, deveria estar sujeita à lei da livre concorrência.

Uma vez que nós adquiramos essa convicção, o que nos resta fazer? Resta-nos investigar como é que foi ocorrer o fato de a produção de segurança não estar sujeita à lei da livre concorrência, mas sim a diferentes princípios.

Quais são esses princípios?

Aqueles do monopólio e do comunismo.

No mundo inteiro, não há um único estabelecimento da indústria de segurança que não seja baseado no monopólio ou no comunismo.

A esse propósito, faremos, en passant, uma simples observação.

A economia política desaprovou igualmente o monopólio e o comunismo nos vários ramos da atividade humana, onde quer que os encontrara. Então, não é estranho e irracional que ela os aceite na indústria de segurança?


V. Monopólio e Comunismo

Examinemos neste momento como é que todos os governos conhecidos estiveram sujeitos à lei do monopólio ou organizados de acordo com o princípio comunista.

Em primeiro lugar, investiguemos o que é entendido pelas palavras monopólio e comunismo.

É uma verdade observável que, quanto mais urgentes e necessários forem os desejos da pessoa, maiores serão os sacrifícios que ela estará disposto a suportar para satisfazê-los. Agora, há algumas coisas que são encontradas em abundância na natureza — cuja produção, portanto, não requer um grande consumo de trabalho —, mas que, uma vez que satisfazem esses desejos urgentes e necessários, podem consequentemente adquirir um valor de troca muito acima da proporção dos seus valores naturais. Tome-se o sal como exemplo. Suponha-se que um homem — ou um grupo de homens — consiga ter estabelecidas para ele — ou eles — a produção e a venda exclusivas de sal. É óbvio que esse homem — ou esse grupo — poderia aumentar o preço dessa mercadoria muito acima do seu valor, muito acima do preço que ela teria sob o regime de livre concorrência.

Será dito, então, que esse homem — ou esse grupo — possui um monopólio e que o preço do sal é um preço monopolístico.

Mas é também óbvio que os consumidores não consentirão em pagar a sobretaxa monopolística. Será necessário compeli-los a pagá-la — e, para compeli-los, o emprego da força será necessário.

Todo monopólio, necessariamente, é baseado na força.

Quando os monopolistas não são mais fortes do que os consumidores que exploram, o que acontece?

Em todas as ocasiões, o monopólio finalmente desaparece através da violência ou através de uma transação pacífica, amistosa. Com o que ele é substituído?

Se os consumidores unidos e insurgentes assegurarem os meios de produção da indústria do sal, eles muito provavelmente confiscarão essa indústria para o seu próprio benefício; e aquilo em que primeiro pensarão será não em estabelecer nessa indústria a livre competição, mas em explorá-la, em comum, por conta própria. Os consumidores, portanto, nomearão um diretor — ou uma comissão diretora — para operar as salinas, a quem eles alocarão os fundos necessários para pagar os custos da produção de sal; assim, uma vez que a experiência do passado os terá tornado desconfiados, já que eles terão medo de que o diretor nomeado vá então tomar a produção para o seu próprio benefício e simplesmente reconstituir de forma escancarada ou dissimulada o velho monopólio para o seu próprio lucro, eles elegerão delegados — representantes encarregados de votar os fundos necessários para os gastos de produção — a fim de supervisionar o emprego dos recursos e a fim de certificar que o sal produzido seja igualmente distribuído àqueles que têm direito a ele. A produção do sal será organizada dessa maneira.

Essa forma de organização da produção recebeu o nome de comunismo.

Quando essa organização é aplicada a uma única mercadoria, o comunismo é chamado de parcial.

Quando essa organização é aplicada a todas as mercadorias, o comunismo é dito completo.

Entretanto, sendo o comunismo parcial ou completo, a economia política não é mais tolerante para com ele do que para com o monopólio, do qual ele é tão-somente uma extensão.


VI. A Monopolização e a Coletivização da Indústria de Segurança

O que acaba de ser dito sobre o sal não é aplicável à segurança?

Não é esta a história das monarquias e das repúblicas?

Em todo lugar, a produção de segurança começou sendo organizada como um monopólio; e hoje em dia, em todo lugar, ela tende a ser organizada comunitariamente.

Aqui está o motivo.

Entre as mercadorias tangíveis e intangíveis necessárias ao homem, nenhuma, com a possível exceção do trigo, é mais indispensável — e, portanto, não pode suportar um peso monopolístico tão grande — do que a segurança.

E nenhuma também é tão mais propícia à monopolização do que ela.

Qual é, com efeito, a situação dos homens que precisam de segurança? É a fraqueza. Qual é a situação daqueles que assumem a responsabilidade de prover-lhes essa necessária segurança? É a força. Se fosse de outra forma — se os consumidores de segurança fossem mais fortes que os produtores —, eles obviamente dispensariam a assistência deles.

E, se os produtores de segurança são originalmente mais fortes do que os consumidores, não será mais fácil para os primeiros impor um monopólio sobre os últimos?

Em todos os lugares, quando se originam as sociedades, nós vemos as categorias humanas mais fortes e mais beligerantes tomarem para si o governo exclusivo da sociedade. Em todos os lugares, vemos essas categorias assumindo o monopólio da segurança sobre territórios mais ou menos extensos, conforme os seus números e as suas forças.

E, sendo esse monopólio, pela sua própria natureza, extraordinariamente lucrativo, em todos os lugares nós vemos as categorias investidas do monopólio da segurança dedicando-se a amargas lutas para aumentar o alcance dos seus mercados e conseguir um maior número de consumidores forçados, para que, assim, os seus ganhos aumentem.

A guerra tem sido a consequência necessária e inevitável do estabelecimento do monopólio na segurança.

Outro efeito inevitável foi que esse monopólio gerou todos os outros monopólios.

Vendo a situação dos monopolistas de segurança, os produtores das outras mercadorias não puderam deixar de notar que nada no mundo é mais vantajoso do que o monopólio. Eles, portanto, ficaram tentados a aumentar os ganhos das suas próprias indústrias pelo mesmo processo. Mas do que eles precisavam para monopolizar, em detrimento dos consumidores, as mercadorias que produziam? Eles requeriam a força. Eles, porém, não possuíam a força necessária para superar a resistência dos consumidores em questão. O que eles, então, fizeram? Eles a pediram emprestado, com uma certa consideração, àqueles que a possuíam. Eles solicitaram e obtiveram, ao preço de uma taxa acordada, um privilégio exclusivo de exercer as suas indústrias dentro de determinados limites. Visto que as taxas por esses privilégios proviam aos produtores de segurança uma boa soma em dinheiro, o mundo logo ficou coberto de monopólios. O trabalho e o comércio estavam em todos os lugares algemados, acorrentados; e a condição das massas permaneceu tão miserável quanto possível.

No entanto, depois de séculos de sofrimento, quando a iluminação pouco a pouco se espalhou pelo mundo, as massas, que estavam sufocadas sob essas cadeias de privilégios, começaram a se rebelar contra os privilegiados e a exigir a liberdade, isto é, a supressão dos monopólios.

Esse processo tomou várias formas. O que aconteceu na Inglaterra, por exemplo? Originalmente, a classe que governava o país e que era militarmente organizada (a aristocracia), tendo como cabeças um líder hereditário (o rei) e um conselho administrativo igualmente hereditário (a Câmara dos Lordes), estabelecia o preço da segurança, a qual ela havia monopolizado, ao nível que lhe aprouvesse. Não havia negociação entre os produtores de segurança e os consumidores. Este era o domínio do absolutismo. Todavia, enquanto o tempo passava, os consumidores, tendo tomado consciência do seu próprio número e da sua própria força, rebelaram-se contra o regime puramente arbitrário e obtiveram o direito de negociar com os produtores o preço das mercadorias. Para esse propósito, eles mandaram delegados à Câmara dos Comuns para discutir o nível dos impostos, isto é, o preço da segurança. Eles, assim, foram capazes, de certo modo, de melhorar as suas condições. Contudo, os produtores de segurança ainda podiam opinar diretamente sobre a nomeação dos membros da Câmara dos Comuns, de forma que o debate não era totalmente aberto, permanecendo o preço da mercadoria acima do seu valor natural. Um dia, os consumidores explorados se insurgiram contra os produtores, arrancando deles a indústria de segurança. Os consumidores, então, assumiram a responsabilidade de manter essa indústria por si mesmos, escolhendo, para esse fim, um diretor de operações assistido por um Conselho. O comunismo substituiu o monopólio. Todavia, o arranjo não funcionou, e vinte anos depois o monopólio anterior foi restabelecido. Somente nesse momento os monopolistas foram sábios o suficiente para não restaurar o absolutismo; eles aceitaram o livre debate sobre os impostos, esforçando-se incessantemente, enquanto isso, para corromper os delegados do partido de oposição. Eles deram a esses delegados o controle de vários postos da administração da segurança; e chegaram até mesmo a dar acesso para o núcleo do seu conselho superior aos mais influentes desses delegados. Nada poderia ter sido mais inteligente do que essa atitude. Entretanto, os consumidores de segurança finalmente tomaram consciência desses abusos e exigiram a reforma do Parlamento. Essa reforma, disputada por bastante tempo, foi finalmente conseguida; e, desde aquele tempo, os consumidores obtiveram significante esclarecimento acerca dos seus fardos.

Na França, o monopólio da segurança, depois de ter atravessado, de forma semelhante, frequentes vicissitudes e várias modificações, acabou de ser derrubado pela segunda vez.³  Como aconteceu na Inglaterra, o monopólio para o benefício de uma casta — e, então, em nome de uma certa classe da sociedade — foi finalmente substituído pela produção comunal. Os consumidores, como um todo, comportando-se como acionistas, nomearam um diretor responsável pela supervisão das ações do gerente e da sua administração.

Nós nos contentaremos em fazer uma simples observação em relação ao novo regime.

Assim como o monopólio da segurança logicamente engendrou um monopólio universal, a segurança comunista deve logicamente engendrar o comunismo universal.

Com efeito, temos de escolher uma destas alternativas:

Ou a produção comunista é superior à produção livre; ou ela não é.

Se o for, então ela precisa sê-lo para todas as coisas, não apenas para a segurança.

Se não o for, o progresso requer que ela seja substituída pela livre produção.

Comunismo completo ou liberdade completa: esta é a escolha!


VII. Governo e Sociedade

Mas é concebível que a produção de segurança seja organizada de formas não monopolísticas ou de formas não comunistas? Ela poderia, concebivelmente, ser relegada à livre competição?

A resposta a essa questão, por parte dos autores políticos, é unânime: Não.

Por quê? Nós diremos por quê.

Porque esses autores, que estão preocupados especialmente com governos, nada sabem sobre a sociedade. Eles a consideram um produto artificial e acreditam que a missão do governo é modificá-la e refazê-la constantemente.

Agora, para modificar ou refazer a sociedade, é necessário possuir uma autoridade superior àquela dos vários indivíduos que a compõem.

Os governos monopolísticos clamam ter recebido de Deus essa autoridade que lhes dá o direito de modificar ou de refazer a sociedade de acordo com os seus caprichos e de dispor das pessoas e das propriedades delas da maneira que lhes aprouver. Os governos comunistas apelam à razão humana, como manifestada pela maioria do povo soberano.

Mas os governos monopolistas e comunistas realmente possuem essa autoridade superior, irresistível? Eles, na realidade, têm uma autoridade maior do que aquela que um governo livre poderia possuir? Isso é o que devemos investigar.


VIII. O Poder Divino dos Reis e das Maiorias

Se fosse verdade que a sociedade não se organizasse naturalmente; se fosse verdade que as leis que governam o seu movimento constantemente se modificassem ou se refizessem, os legisladores, necessariamente, teriam de possuir uma autoridade imutável, sagrada. Sendo o prolongamento da Providência na Terra, eles teriam de ser considerados quase que iguais a Deus. Se fosse de outra forma, não lhes seria impossível completar as suas missões? Com efeito, não é  possível intervir nas questões humanas, não é possível tentar direcioná-las e regulá-las sem diariamente ofender uma multidão de interesses. A não ser que se acredite que aqueles no poder recebem essa autoridade de uma entidade superior, os interesses prejudicados resistirão.

Daí a ficção do direito divino.

Essa ficção, certamente, foi a melhor imaginável. Se você tiver sucesso em persuadir uma multidão de que o próprio Deus escolheu certos homens ou certas castas para legislar e governar a sociedade, ninguém sonhará em se revoltar contra os nomeados pela Providência; e tudo aquilo que o governo fizer será aceito. Um governo baseado no direito divino é imperecível.

A única condição para isso é a de que se acredite no direito divino.

Se admitirmos o pensamento de que os líderes das pessoas não recebem a sua inspiração diretamente da Providência — se admitirmos o pensamento de que eles obedecem puramente a impulsos humanos —, o prestígio que os cerca desaparecerá. As suas decisões soberanas serão resistidas, assim como as pessoas resistem a qualquer criação humana cuja utilidade não seja claramente demonstrada.

Dessa maneira, é fascinante ver os cuidados que os teóricos do direito divino tomam para estabelecer a super-humanidade das classes em posse do governo humano.

Ouçamos, por exemplo, o Sr. Joseph de Maistre:

O homem não faz soberanos. No máximo, ele pode servir como instrumento para destronar um soberano e entregar o seu estado para outro soberano, ele próprio já um príncipe. Além disso, nunca existiu uma família soberana de origem plebeia. Se esse fenômeno surgisse, ele marcaria uma nova época na Terra. 
(...) Está escrito: Sou eu quem faz soberanos. Esta não é apenas uma frase religiosa, uma metáfora de um pregador; é a verdade literal pura e simples. É uma lei do mundo político. Deus faz reis, ao pé da letra. Ele prepara as classes reais; ele as cria no centro de uma nuvem que esconde as suas origens. Finalmente elas surgem, coroadas com glória e honra; elas tomam os seus lugares.4

De acordo com esse sistema, que incorpora a vontade da Providência em certos homens — a qual investe esses escolhidos, esses ungidos com uma autoridade quase divina —, os súditos, evidentemente, não têm direito algum. Eles precisam se submeter, sem questionar, aos decretos da autoridade soberana, como se fossem os decretos da própria Providência.

Segundo Plutarco, o corpo é o instrumento da alma, e a alma é o instrumento de Deus. Conforme a escola do direito divino, Deus seleciona certas almas e as usa como instrumentos para governar o mundo.

Se os homens tivessem fé nessa teoria, certamente nada poderia perturbar um governo baseado no direito divino.

Infelizmente, eles perderam completamente a fé. Por quê?

Porque, em um belo dia, eles decidiram questionar e raciocinar; e, ao questionarem, ao raciocinarem, eles descobriram que os seus governos não os governaram melhor do que eles próprios, simples mortais sem contato com a Providência, poderiam fazê-lo.

Foi o livre exame que pôs em descrédito a ficção do direito divino, ao ponto em que os súditos dos monarcas (ou das aristocracias) baseados no direito divino só lhes obedecem enquanto acharem que é do seu próprio interesse lhes obedecer.

E a ficção comunista teve melhor sorte?

De acordo com a teoria comunista, da qual Rousseau é o supremo pastor, a autoridade não vem de cima, mas de baixo.

O governo não recorre mais à Providência para justificar a sua autoridade; ele apela à humanidade unida, para a nação única, indivisível e soberana.

Isso é o que os comunistas, os partidários da soberania popular, propagam. Eles assumem que a razão humana tem o poder de descobrir as melhores leis e a organização que mais perfeitamente serve à sociedade; assumem que, na prática, essas leis se revelam a partir da conclusão de um livre debate de opiniões conflitantes. Se não houver unanimidade — se ainda houver dissenso após o debate —, a maioria está certa, pois ela é composta de um número maior de indivíduos racionais. (Supondo-se, é claro, que esses indivíduos são iguais; caso contrário, toda a estrutura entra em colapso.) Por consequência, eles insistem que as decisões da maioria se tornem a lei e que a minoria seja obrigada a se submeter a ela, mesmo que isso contrarie as suas convicções mais profundas e fira os seus interesses mais preciosos.

Esta é a teoria; mas, na prática, a autoridade da decisão da maioria realmente tem esse caráter irresistível, absoluto, que se presume? É ela sempre, em toda instância, respeitada pela minoria? Poderia ela sê-lo?

Exemplifiquemos.

Suponhamos que o socialismo tenha sucesso em sua propagação junto às classes trabalhadoras do interior, assim como já o tem entre as classes trabalhadoras das cidades; que ele, por consequência, torne-se a maioria no país; e que ele, beneficiando-se dessa situação, estabeleça uma maioria socialista na Assembleia Legislativa e nomeie um presidente socialista. Suponhamos que essa maioria e esse presidente, investidos de autoridade soberana, decretem a imposição de um tributo sobre os ricos de três bilhões, para organizar o trabalho dos pobres, como o Sr. Proudhon demandou. É provável que a minoria se submeta pacificamente a essa espoliação iníqua e absurda, embora legal, embora constitucional?

Não. Sem nenhuma dúvida, não hesitaria em negar a autoridade da maioria e em defender a sua propriedade.

Sob esse regime, assim como sob o precedente, aquele que possui a autoridade somente é obedecido enquanto se pensa que é do próprio interesse lhe obedecer.

Isso nos leva a afirmar que o fundamento moral da autoridade não é mais sólido nem mais amplo, sob um regime de monopólio ou de comunismo, do que poderia sê-lo sob um regime de liberdade.


VIII. O Regime do Terror

Mas admita-se que os partidários da ideia de uma organização artificial, os monopolistas ou os comunistas, estejam certos; que a sociedade não seja naturalmente organizada e que a tarefa de fazer e desfazer as leis que regulam a sociedade continuamente recaia sobre os homens; então se pense em que lamentável situação o mundo se encontraria. A autoridade moral dos governantes repousa, na realidade, sobre o interesse próprio dos governados. Como os últimos possuem uma tendência natural a opor resistência a qualquer coisa danosa aos seus interesses, uma autoridade não reconhecida de forma contínua requereria o auxílio da força física.

Os monopolistas e os comunistas, ademais, entendem perfeitamente essa necessidade.

Se alguém, diz o Sr. de Maistre, tentar depreciar a autoridade dos escolhidos de Deus, que o levemos ao poder secular, que deixemos o carrasco executar o seu trabalho.

Se alguém não reconhecer a autoridade daqueles escolhidos pelo povo, dizem os teóricos da escola de Rousseau, se alguém resistir a qualquer decisão da maioria, que façamos com que ele seja punido como um inimigo do povo soberano, que deixemos a guilhotina fazer justiça.

Essas duas escolas, ambas as quais têm a organização artificial como ponto de partida, necessariamente conduzem à mesma conclusão: o TERROR.


IX. O Livre Mercado de Segurança

Seja-nos permitido, agora, formular uma simples situação hipotética.

Imaginemos uma cidade recém-nascida. Os homens que a compõem estão ocupados trabalhando e comercializando os frutos dos seus esforços. Um instinto natural revela a esses homens (1) que as suas pessoas, a terra que ocupam e cultivam e os frutos do seu trabalho são as suas propriedades e (2) que ninguém, exceto eles mesmos, tem o direito de dispor delas ou de tocá-las. Esse instinto não é hipotético; ele existe. No entanto, sendo o homem uma criatura imperfeita, essa consciência do direito de todos às suas pessoas e aos seus bens não será encontrada no mesmo grau em todas as almas, e alguns indivíduos executarão tentativas criminosas, por violência ou por fraude, contra a pessoa ou a propriedade dos outros.

Daí a necessidade de uma indústria que evite ou suprima essas agressões violentas ou fraudulentas.

Suponhamos que um homem — ou uma associação de homens — surja e diga:

Por uma recompensa, eu assumirei a tarefa de evitar ou suprimir tentativas criminosas contra as pessoas e as propriedades.

Que aqueles que desejam que as suas pessoas e as suas propriedades sejam protegidas da agressão se dirijam a mim.

Antes de fechar negócio com esse produtor de segurança, o que farão os consumidores?

Em primeiro lugar, eles verificarão se ele é realmente forte o suficiente para protegê-los.

Em segundo lugar, eles verificarão se o seu caráter é tal que eles não terão de se preocupar com a hipótese de que ele instigue as próprias agressões que deve suprimir.

Em terceiro lugar, eles verificarão se outro produtor de segurança, oferecendo garantias iguais, está disposto a oferecer-lhes essa mercadoria em melhores termos.

Esses termos são de vários tipos.

Para serem capazes de garantir aos consumidores a total segurança das suas pessoas e das suas propriedades — e, em caso de dano, para lhes dar uma compensação na proporção das perdas sofridas —, seria necessário, de fato:

    1. Que o produtor estabelecesse certas penalidades aos agressores das pessoas e aos violadores das propriedades e que os consumidores concordassem em se submeter a essas penalidades caso cometessem crimes;

    2. Que ele impusesse certas inconveniências aos consumidores, com o objetivo de facilitar a descoberta dos autores dos crimes;

    3. Que ele reunisse regularmente, para cobrir os seus custos de produção e para ter um retorno apropriado pelos seus esforços, uma certa soma, a qual variaria de acordo com a situação dos consumidores, com as suas ocupações particulares e com o tamanho, o valor e a natureza das suas propriedades.

Se esses termos, necessários para manter essa indústria, forem acordados com os consumidores, o negócio será fechado. Caso contrário, os consumidores ficarão sem proteção ou procurarão outro produtor.

Agora, se nós considerarmos a natureza particular da indústria de segurança, é óbvio que os produtores necessariamente restringirão as suas clientelas a certos limites territoriais. Eles seriam incapazes de cobrir os seus custos se tentassem prover serviços de polícia em localidades compostas apenas de poucos clientes. As suas clientelas, naturalmente, estarão concentradas num centro de atividades. Eles, porém, seriam incapazes de abusar dessa situação ditando as condições para os consumidores. Na hipótese de um aumento abusivo do preço da segurança, os consumidores teriam sempre a opção de escolher um novo empreendedor ou um empreendedor vizinho.

Essa opção que o consumidor retém — a de poder comprar segurança de quem quiser — ocasiona uma constante concorrência entre todos os produtores; cada produtor se esforçará para manter ou aumentar a sua clientela através de uma justiça mais barata, mais rápida, mais completa e melhor.⁵

Se, pelo contrário, o consumidor não for livre para adquirir os serviços de segurança de quem quiser, imediatamente veremos ser aberta uma grande profissão dedicada à arbitrariedade e ao mau gerenciamento. A justiça se tornará lenta e custosa, e a polícia, incômoda; a liberdade individual não será mais respeitada; e o preço da segurança será abusivamente inflado e iniquamente dividido, de acordo com o poder e a influência desta ou daquela classe de consumidores. Os protetores se envolverão em amargas lutas para separar os consumidores uns dos outros. Em suma, todos os abusos inerentes ao monopólio e ao comunismo emergirão.

Sob a livre concorrência, a guerra entre os produtores de segurança perde totalmente o seu fundamento, a sua justificação. Por que eles guerreariam? Para conquistar consumidores? Mas os consumidores não se permitiriam ser conquistados. Eles teriam o cuidado de não se deixarem ser protegidos por homens que inescrupulosamente atacam as pessoas e as propriedades dos consumidores das agências rivais. Se algum audacioso conquistador tentasse se tornar um ditador, eles imediatamente pediriam auxílio aos consumidores livres ameaçados por essa agressão e fariam justiça. Assim como a guerra é a consequência natural do monopólio, a paz é o efeito natural da liberdade.

Sob um regime de liberdade, a organização natural da indústria de segurança não seria diferente daquela das outras indústrias. Em distritos pequenos, um único empreendedor seria suficiente. Esse empreendedor poderia deixar o negócio para o seu filho ou vendê-lo para outro empreendedor. Em distritos maiores, uma companhia, por si mesma, acumularia recursos para adequadamente exercer essa importante e difícil empresa. Se fosse bem gerenciada, essa companhia poderia facilmente perdurar, e a segurança perduraria junto com ela. Na indústria de segurança, como na maioria dos outros ramos de produção, esse último modo de organização provavelmente substituiria o primeiro, no final.

Por um lado, isso seria uma monarquia; e, por outro, uma república; mas seria uma monarquia sem monopólio e uma república sem comunismo.

De qualquer forma, essa autoridade seria aceita e respeitada em nome da utilidade — e não haveria uma autoridade imposta pelo terror.

Haverá, indubitavelmente, discordância sobre se essa situação hipotética é factível ou não. Entretanto, ao risco de sermos considerados utópicos, nós afirmamos que isso não é contestável, que um cuidadoso exame dos fatos decidirá o problema do governo cada vez mais em favor da liberdade, assim como tal exame cuidadoso decide todos os outros problemas econômicos. Estamos convencidos, naquilo que nos diz respeito, de que um dia as sociedades se estabelecerão de forma a reclamar a liberdade de governo, assim como já se estabeleceram em favor da liberdade de comércio.

E nós não hesitamos em acrescentar que, depois que essa reforma for alcançada e depois que todas as barreiras artificiais para a livre ação das leis naturais que governam o mundo econômico tiverem desaparecido, a situação dos vários membros da sociedade se tornará a melhor possível.



1. Embora este artigo possa parecer utópico em suas conclusões, nós, contudo, acreditamos que devemos publicá-lo para atrair a atenção dos economistas e dos jornalistas a uma questão que, até agora, tem sido tratada de forma desconexa e que deveria, portanto, em nossos dias e em nossa era, ser abordada com maior precisão. Tantas são as pessoas que exageram a natureza e as prerrogativas do governo que se tornou útil formular estritamente as fronteiras fora das quais a intervenção da autoridade se torna anárquica e tirânica em vez de protetora e lucrativa. (Nota do editor-chefe do Journal des Économistes, 1849.)
2. Em seu notável livro De la liberté du travail, vol. III, p. 253.
3. Molinari escrevia este texto um ano depois das revoluções de 1848. (Nota do Tradutor — N. do T.)
4. Du principe générateur des constitutions politiques, prefácio.
5. Adam Smith, cujo notável espírito de observação se estende a todas as matérias, chama atenção para o fato de que a administração da justiça ganhou muito, na Inglaterra, com a competição entre diferentes cortes de lei:
"Parece que as taxas das cortes foram originalmente a principal fonte de financiamento das diferentes cortes de justiça. Cada corte procurava trazer para si tantos casos quantos pudesse, pretendendo, com isso, acolher (tomar conhecimento de) muitas causas que não deveriam, a princípio, cair sob a sua jurisdição. A corte dos magistrados do rei (o tribunal superior), instituída apenas para as causas criminais, tomava conhecimento de causas civis; pois o litigante alegava que o acusado, ao não agir com justiça para com ele, era culpado de algum dano ou alguma infração. A corte do erário (o tribunal do fisco), instituída para auferir a receita do rei e para executar o pagamento de débitos que só fossem devidos ao rei, tomava conhecimento de casos de todos os outros contratos de débito; pois o litigante alegava que não podia pagar o rei porque o seu devedor não lhe pagara a dívida. Em consequência desses casos, passou-se a depender totalmente das partes litigantes em qual corte elas escolheriam ter os seus casos julgados; e cada corte procurava, através de maior eficiência e maior imparcialidade, atrair para si tantos mais casos quantos pudesse. Talvez a admirável constituição das cortes de justiça hoje em vigor na Inglaterra tenha sido original-mente, em grande medida, formada por essa emulação que antigamente ocorria entre os seus respectivos juízes; cada juiz esforçava-se para fornecer, em sua própria corte, para todo tipo de injustiça, a solução mais rápida e eficaz que a lei admitia." — A Riqueza das Nações, livro V, capítulo I, parte II.

Por Gustave de Molinari
Tra.: 1977 por J. Huston McCulloch [Por.: Erick Vasconcelos]

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Thomas Hodgskin, o libertário extraordinário

Thomas Hodgskin, um dos pensadores libertários mais notáveis, embora pouco conhecido e injustamente negligenciado do século XIX
Por George H. Smith



O inglês Thomas Hodgskin nasceu em 12 de Dezembro de 1787. Seu pai esbanjador, apesar de ganhar um bom dinheiro como negociante no armazém naval da cidade de Chatham, conseguiu manter sua família em dificuldades financeiras, o que o fez enviar Thomas (que mal tinha doze anos) para servir como cadete a bordo de um navio de guerra inglês.

Embora tenha servido com distinção durante a expedição de Copenhague e elevado-se ao posto de tenente, Hodgskin detestou seus doze anos como marinheiro. Em primeiro lugar, isso o privou de uma educação. Seu acesso a livros era limitado, então ele não podia fazer nada mais além do que "refletir na vigília noturna, no solitário convés, sobre o largo oceano, no meio das cenas mais selvagens ou mais pacíficas da natureza… antes que eu adquirisse uma quantidade suficiente de material."

O espírito independente de Hodgskin, sua intensa aversão a autoridade injusta, e sua determinação “por fazer uma resistência poderosa à opressão toda vez que eu fosse sua vítima” não eram bem adequados aos rigores e disciplinas severas da vida naval. Então, quando tornou-se claro que ele seria preterido para uma promoção, Hodgskin reclamou “ao comandante-supremo da injúria feita a mim por ele, em uma linguagem que eu pensava que ele merecia”. É claro, isso apenas tornou as coisas piores. Hodgskin, aos vinte e cinco anos, foi forçado a se aposentar com meio salário, depois que escreveu An Essay on Naval Discipline (1813) ["Um Ensaio sobre a Disciplina Naval"], uma acusação mordaz ao recrutamento e as condições brutais sofridas pelos marinheiros britânicos.

A experiência de Hodgskin com os castigos horríveis impostos aos marinheiros britânicos até por pequenas faltas o levou a questionar tanto a justiça como a utilidade do suposto “direito” à punição. Os marinheiros britânicos, que geralmente vinham da classe baixa, eram frequentemente postos em serviços contra a sua vontade, e seus oficiais tendiam a vê-los como brutos que apenas podiam ser controlados apenas pelo chicote.

Hodgskin, que nesse período tinha lido John Locke, William Paley e outros filósofos morais, tinha uma opinião diferente. Os humanos, criados por Deus com “sentimentos semelhantes”, são “todos feitos iguais”. Muitas diferenças individuais são causadas pelo meio político e social. Se os ingleses tendem a ser mais felizes e mais virtuosos que as pessoas de outras nações, muito disso era porque eles eram menos governados que em outras nações. E se os marinheiros ingleses pareciam mais brutais que outros ingleses, isso não era devido a nenhum defeito inerente à sua natureza, mas às condições bárbaras da vida naval.

Em resumo, se você tratar os homens como brutos, eles irão se comportar como brutos. Os recrutadores e o alistamento, de acordo com Hodgskin, deveriam ser abolidos e substituídos pelo alistamento voluntário e de curto prazo; o pagamento deveria ser aumentado para que os marinheiros pudessem dispor de um padrão de vida decente; e as leis penais draconianas da marinha – que eram aplicadas arbitrariamente, sem recurso ao devido processo – deveriam ser eliminadas. Se deve haver punição, então a marinha deve seguir o exemplo das cortes civis da Inglaterra, que “não punem o inocente” e que são administradas de acordo com leis imparciais, não pelos caprichos dos superiores.

Assim como Hodgskin (que foi notavelmente franco sobre suas motivações) iria depois observar, seu Essay on Naval Discipline era uma reação emocional ao seu tratamento injusto por oficiais superiores: “Eu estava com raiva de ser punido quando pensava que estava fazendo o meu dever de bom homem e bom cidadão”. Hodgskin usou sua raiva para estimular mais pesquisas sobre os direitos à punição:

"Essa raiva me fez ler livros sobre o assunto, e busquei em vão. Eu busquei e ainda busco nas obras de autores notórios por qualquer justificativa do direito de punição, e o resultado da busca foi um sistema de opinião que, até onde eu li, pode ser considerado, como um todo, peculiar."

Hodgskin iria depois elaborar sobre essas opiniões “peculiares” nas páginas da revista The Economist, depois de se tornar editor sênior desse periódico (o mesmo publicado atualmente) em 1846 – uma posição que manteve por onze anos. Os muitos artigos de Hodgskin na The Economist tornaram a revista um dos periódicos libertários mais interessantes e provocantes de seu tempo. Além do apoio ao laissez-faire, à educação voluntária e a outras causas liberais (clássicas), Hodgskin também se opôs à pena de morte e questionou o conhecimento tradicional sobre a eficiência da punição como um impedimento ao crime.

De acordo com Hodgskin, a maioria dos crimes são motivados por um desejo de escapar da pobreza intolerável, e tal pobreza geralmente é consequência dos impostos, das regulações econômicas e outras restrições governamentais às atividades de livre mercado. Se fosse permitido que as pessoas perseguissem seus próprios interesses através da interação voluntária com outros, e se fosse permitido que elas mantivessem os frutos de seu próprio trabalho ao invés de tê-lo expropriado pelo governo, então uma boa parte da pobreza – juntamente com a maior motivação para os atos criminosos – seria eliminada.

Por volta de 1815, Thomas Hodgskin tornou-se amigo de Francis Place, o famoso alfaiate e radical da classe trabalhadora da Charing Cross Road. Essa amizade deu a Hodgskin acesso aos libertários britânicos – incluindo Jeremy Bentham, seu protegido escocês James Mill (o pai de John Stuart Mill), e um idoso William Godwin, que tinha ganho destaque com a primeira defesa sistemática do anarquismo filosófico em An Enquiry Concerning Political Justice (1793).

Hodgskin sentiu que sua idade e outros obstáculos iriam tornar difícil embarcar em uma nova carreira. A medicina exigiria que ele aprendesse latim, enquanto direito exigiria que ele suprimisse seu amor pela justiça – então, dado que a paz tinha retornado à Europa em 1815, Hodgskin decidiu embarcar em um grande tour e escreveu um livro baseado em suas experiências. O resultado foi seu primeiro grande trabalho, Travels in the North of Germany, publicado em dois volumes em 1820.

Esses volumes combinavam observações interessantes com comentários políticos sobre “os países muito governados da Alemanha”. Hodgskin enfatizou a ineficiência e o desperdício dos projetos governamentais. Por exemplo, ele comentou sobre a qualidade inferior das estradas financiadas pelo estado na Alemanha, contrastando-as com as financiadas privadamente na Inglaterra, e até sugeriu que as funções da polícia devessem ser substituídas por mãos privadas. Como Hodgskin colocou, "o verdadeiro negócio dos homens, o que promove sua prosperidade, sempre é melhor feito por eles mesmos que por quaisquer poucos indivíduos separados e distintos, agindo como governo em nome do todo."

"Quando é observado que a prosperidade de toda nação está em uma proporção inversa ao poder e à interferência de seu governo, podemos quase ser tentados a acreditar que a opinião comum, que os governos são necessários e benéficos, é um daqueles preconceitos gerais de que os homens herdaram de uma era bárbara e ignorante, e que o conhecimento mais extenso e maior civilização demonstrará ser um erro cheio de mal."

As centenas de principados alemães eram a consequência de divisões políticas arbitrárias, mas a solução não era uni-los sob um mesmo conquistador único ou governo central. Hodgskin deplorava a “veneração estúpida” aos grandes homens, que mascaram suas ambições pessoais e auto-interesses na retórica do bem público. Ao invés disso, os alemães precisavam apenas “afugentar seus diferentes mestres para torná-los todos cientes que seu interesse é o mesmo em todo lugar”.

Então Hodgskin defendeu a ordem social espontânea que emerge da propriedade privada, da troca voluntária e a harmonia natural de interesses (como explicado por Adam Smith e outros economistas políticos), enquanto desprezou a unidade “quadrada, mecânica” do despotismo e das regulações econômicas que transferem riqueza da classe produtiva de trabalhadores para a classe improdutiva dos governantes.

Hodgskin não recomendou um sistema parlamentarista, tal como aquele encontrado na Inglaterra, como a cura para os problemas alemães. A base para a prosperidade inglesa não existia devido a seu parlamento, mas por um público vigilante e uma imprensa livre que agia como um exame contínuo sobre os abusos de poder. “Os males de uma sociedade não podem ser tratados por atos de parlamento”. Mesmo as leis e propostas de assistência pública para a reforma agrária, embora bem intencionadas, não irão cumprir seus propósitos pretendidos; tais medidas meramente criam a ilusão de reforma enquanto colocam mais poder nas mãos dos legisladores. "Os meios mais simples de fazer a luta pela sobrevivência frugal são suprir as necessidades de ninguém e deixar cada homem com o produto de seu trabalho."

Os alemães, como muitos europeus, tinham um concepção falsa de economia política, de acordo com a qual a prosperidade pode ser promovida por muitas formas de governo. Na verdade, a prosperidade pode vir apenas através do trabalho humano e da troca voluntária, e “essas regulações sociais devem ser expostas à censura, que nos infligiram tanta pobreza e angústia”.

Hodgskin estava vivendo em Edinburgo quando Travels foi publicado, e essa cidade foi por muito tempo um centro de agitação liberal. Enquanto sua esposa (que ele tinha conhecido em suas viagens) estava dando aulas de alemão para complementar a renda da família, Hodgskin estava fazendo sua parte escrevendo artigos para o Edinburgh Review e outros jornais liberais. Ele escreveu para Francis Place:

"Indiscutivelmente, a abolição de todas as restrições de qualquer tipo é o grande ponto a ser alcançado. Queremos um legislativo destruidor, cujo maior objetivo seria retirar os decretos de seus predecessores."

Embora em seu tempo Hodgskin tivesse uma boa parte em comum com outros reformistas liberais, suas tendências anarquistas geralmente deram à sua opinião um viés radical que o alienou de outros liberais. Essa tensão tornou-se evidente em sua reação ao “Massacre de Peterloo” de 16 de Agosto de 1819.

Depois de uma coalizão de reformistas da classe média e trabalhadora organizar um encontro em massa no St. Peter´s Field em Manchester para pedir por reforma parlamentar, a multidão foi atacada por soldados montados que mataram 11 pessoas e feriram cerca de outras 400, incluindo 100 mulheres. Embora esse incidente fosse universalmente condenado pelos liberais, eles tipicamente focaram-se em sua suposta ilegalidade e o condenaram como uma violação da constituição britânica. Portanto, como Hodgskin via a questão, os liberais, embora explicitamente criticando o governo, estavam implicitamente apoiando o sistema de leis injustas em que o governo dependia a sua legitimidade. Como ele explicou para Place:

"A horrível violação das leis em Manchester parece agora apenas ser um grito e uma palavra de ordem para apoiá-las. Produtiva de misérias como ela tem sido, é a nossa própria constituição miserável que agora nos dizem que devemos defender e apoiar. Eu estou farto de tal absurdo. Eu gostaria de saber de uma única lei que valha a batalha do homem honesto… Eu não conheço uma que por si só valha a pena apoiar, mas todos os homens parecem pensar que é melhor ser golpeados por hussardos ou calar-se nas Bastilhas de acordo com o governo do que confiar em seus companheiros. Eles parecem pensar que é melhor ser espoliador de acordo com o governo que correr a mais remota possibilidade de viver de acordo com a razão."

Em um artigo que submeteu para o Scotsman em Janeiro de 1820, Hodgskin elogiava Smith, Malthus, Bentham e outros economistas políticos que “tinham demonstrado o absurdo de quase toda regulação e, como uma consequência necessária, diminuíram o respeito de todos os homens pela autoridade de onde esses absurdos emanavam”. Mas Scotsman se recusou a publicar esse artigo, provavelmente porque Hodgskin impulsionou sua crítica à lei em uma direção anarquista que poucos liberais podiam aceitar.

Enquanto Jeremy Bentham e seus seguidores tinham criticado as leis ruins como uma consequência de “interesses sinistros” (isto é, a aristocracia rural), Hodgskin estendeu essa perspectiva a todas as leis governamentais, enquanto as contrastava com as leis naturais da interação social. Todas as leis governamentais são designadas por oligarquias governantes para promover seu próprios interesses privados, e essas leis entram em conflito com aqueles direitos naturais da sociedade que servem os interesses gerais do povo. Esse tema recorrente depois iria receber um extensivo tratamento no livro mais importante de Hodgskin, The Natural and Artificial Right of Property Contrasted (1832).

II

As visões libertárias de Hodgskin eram tão extremas que ele frequente e compreensivelmente foi chamado de “anarquista”, apesar dele expressamente repudiar o rótulo.

Se você consultar as histórias padrões sobre o pensamento econômico, você encontrará um rótulo ainda mais curioso ligado a Hodgskin, a saber, “socialista ricardiano”. Esse rótulo tem sido usado porque Hodgskin supostamente usou a teoria do valor-trabalho defendida pelo economista de livre mercado David Ricardo (1772 – 1823) e a desenvolveu em uma crítica de grande escala ao “capital” e aos “capitalistas” – mais notavelmente no Labour Defended Against the Claims of Capital (1825).

Esse tratado está longe de ser o melhor dos trabalhos de Hodgskin, mas é o mais famoso. Por quê? Principalmente porque ele foi repetidamente citado e aclamado por Karl Marx, que foi influenciado por alguns de seus argumentos-base. De fato, no primeiro volume do Capital, Marx elogiou Hodgskin como “um dos mais importantes economistas ingleses modernos”.

Portanto estamos expostos com a anomalia de um defensor radical da propriedade privada e do laissez-faire sendo chamado (por alguns historiadores) de um inglês precursor de Karl Marx. Mas não devemos ser enganados por como as ideias de um intelectual foram usadas por outros intelectuais. O fato que Marx escolheu a dedo uns poucos argumentos e conceitos de Hodgskin e os adaptou em sua própria agenda socialista não transforma Hodgskin em um socialista ou em um precursor de Marx.


"Não há dúvidas que o ultra trabalhismo de Hodgskin influenciou Karl Marx, mas essa teoria do valor-trabalho extrema não o torna um ricardiano, muito menos um socialista. Na verdade, Hodgskin era altamente crítico a Ricardo e ao sistema ricardiano, denunciando a metodologia abstrata de Ricardo, e sua teoria da renda, e se considerava um smithiano ao invés de um ricardiano. A lei natural de [Adam] Smith e sua doutrina de harmonia de interesses do livre mercado também era bem mais própria a Hodgskin."

Considere esses comentários que Hodgskin fez em uma carta a Francis Place em 1820, apenas três anos depois que Ricardo publicou o Principles of Political Economy e cinco anos antes de Hodgskin publicar Labour Defended Against the Claims of Capital:

"Eu acho que eu nunca vi um livro mais destituído de fatos que o do sr. R. [Ricardo, Principles] que, ao mesmo tempo, tenha tido tanta influência. Para mim, parece se basear em definições arbitrárias e suposições estranhas. As duas primeiras sentenças do livro são radicalmente falsas… [Sua] definição de valor está errada… Sua explicação da forma em que o capital fixo tende a diminuir os preços de todas os bens em que entra, sustento que seja a melhor e única boa parte de seu livro… Parece para mim que [o livro] foi construído sem nenhum tipo de fatos, para contradizer muitos e para ter um pouco mais mérito que uma 'sutileza desconcertante'."

No começo de 1823, Hodgskin mudou-se de Edimburgo para Londres, onde se tornou o jornalista cobrindo o parlamento para o Morning Chronicle (cujo editor era um amigo do benthamita James Mill). Depois de meses da chegada a Londres, Hodgskin começou o Mechanics’ Magazine, um jornal educacional direcionado aos trabalhadores das fábricas e outros trabalhadores. Em um tempo em que muitos trabalhadores estavam demandando leis de salário mínimo, Hodgskin argumentou que todas as regulações econômicas, incluindo as leis de salário mínimo, devem ser repudiadas em favor de um mercado livre e desregulado.

Os legisladores, Hodgskin alertou, não são amigos dos trabalhadores. Na verdade, “os legisladores sempre pertenceram às classes não-trabalhadoras da sociedade, e parece ruim, portanto, para o homem pobre ter qualquer lei desse tipo emanando deles”. Membros da classe dominante já tem muito poder, e garanti-los o poder de regular salários iria aumentar seus poderes ainda mais. Mesmo se tais regulações possam evitar a diminuição de salários no curto prazo, os trabalhadores estariam melhores servidos no longo prazo ao buscar seus próprios interesses em um livre mercado, ao invés de depender de legisladores, cuja principal preocupação é preservar seu próprio poder.

Em 1824, enquanto trabalhava como jornalista, Hodgskin observou os debates na Casa dos Comuns que levaram à revogação das Leis de Combinação [Combination Laws], que tinham proibido os sindicatos ao proibir combinações de trabalhadores que desejassem pressionar os empregadores por menores horas de trabalho ou melhores salários. Essas Combination Laws eram o alvo principal dos benthamitas e outros defensores do livre mercado, que argumentavam que deve-se permitir que os trabalhadores negociem livremente com seus empregadores, desde que a coerção não seja usada.

Embora alguns defensores do livre mercado, como Francis Place, tivessem previsto que a revogação indiscriminada das leis proibindo os sindicatos iria diminuir a frequência de greves, não foi isso o que aconteceu. A revogação foi imediatamente seguida de um surto de greves, em que algumas das quais foram violentas. Portanto, tão logo as antigas leis foram revogadas os legisladores assustados aprovaram a Combination Act de 1825. Essa nova legislação, embora permitisse a barganha coletiva em questões pertinentes a salários e condições de empregos, declarava que os membros dos sindicatos não podiam “molestar”, “obstruir” ou “intimidar”. Não era claro, entretanto, como os termos tipo “obstruir” seriam interpretados pelas cortes inglesas.

Esse background histórico é essencial para entender o propósito político de Hodgskin ao escrever Labour Defended Against the Claims of Capital ["O Trabalho Defendido Contra as Reivindicações do Capital"], que carrega o subtítulo: Or the Unproductiveness of Capital proved with Reference to the Present Combinations amongst Journeymen ["Ou a Improdutividade do Capital Provada com Referência às Associações Presentes entre os Trabalhadores"].

Thomas Hodgskin usou a nova lei contra os sindicatos como uma oportunidade de criticar a teoria do capital que tinha sido defendida por David Ricardo e seus seguidores. Os ricardianos, como o economista J. R. McCulloch (que Hodgskin mencionou especificamente), eram alvos particulares de certa forma, já que eles tinham liderado o movimento de revogação à proibição contra os sindicatos e a barganha coletiva. Entretanto, Hodgskin acreditava que esses economistas de livre mercado tinham promovido, mesmo involuntariamente, o preconceito generalizado contra os sindicatos ao investir o “capital” de poderes produtivos que ele na verdade não possui.

Thomas Hodgskin usou a nova lei contra os sindicatos como uma oportunidade de criticar a teoria do capital que tinha sido defendida por David Ricardo e seus seguidores. Os ricardianos, como o economista J. R. McCulloch (que Hodgskin mencionou especificamente), eram alvos particulares de certa forma, já que eles tinham liderado o movimento de revogação à proibição contra os sindicatos e a barganha coletiva. Entretanto, Hodgskin acreditava que esses economistas de livre mercado tinham promovido, mesmo involuntariamente, o preconceito generalizado contra os sindicatos ao investir o “capital” de poderes produtivos que ele na verdade não possui.

A crítica de Hodgskin aos “capitalistas” era severa e incessante. Ele negou “que o capital tenha qualquer reivindicação justa a grande parte da produção nacional que agora o confiaram”. “Quase se é tentado a acreditar que o capital é um tipo de palavra cabalística, como Igreja ou Estado, ou qualquer outro desses termos gerais que são inventados por aqueles que extorquem o resto da humanidade para esconder a mão que os extorque”. Os “efeitos malignos do capital” são vistos pelo fato de que o trabalhador deve dar uma “grande quantidade” do produto de seu trabalho ao capitalista, que mantém “o trabalhador na pobreza e na miséria”. Os capitalistas “só podem ficar ricos onde há um corpo oprimido de trabalhadores”, e eles “têm desde então reduzido o antigo tirano da terra à insignificância comparativa, enquanto herdaram seu poder sobre todas as classes trabalhadoras. É, portanto, tempo agora das afrontas que pairaram por tanto tempo sobre a aristocracia feudal serem empilhadas no capital e nos capitalistas”.

Leitores familiares com a teoria austríaca do capital podem facilmente identificar as sérias falhas no ataque teórico de Hodgskin sobre o capital e os capitalistas (veja a discussão de Rothbard, citada acima, para uma crítica breve porém incisiva). Mas fazendo justiça a Hodgskin, três pontos devem ser mantidos em mente.

1) O livro Labour Defended deve ser lido, em parte, como uma crítica ao “corporativismo”, para usar uma expressão moderna. Hodgskin acreditava que as leis contra os sindicatos e a barganha coletiva tinham criado uma vantagem injusta contra os trabalhadores em favorecimento aos capitalistas. Portanto, os grandes lucros colhidos pelos capitalistas não eram o resultado de forças econômicas naturais, mas foram gerados pelas leis coercivas do governo.

2) Hodgskin distinguiu entre as diferentes funções econômicas que às vezes são incluídas no rótulo “capitalista”. Embora ele salientasse que “tudo que o trabalho produz deve pertencê-lo”, ele também enfatizou que “trabalho” não se refere apenas ao esforço físico mas também às atividades e habilidades mentais. “Eu portanto alertaria, meus caros trabalhadores, para não limitarem o termo trabalho às operações manuais”.

A produção de um bem requer o trabalho conjunto e os esforços cooperativos de muitas pessoas diferentes com muitas habilidades diferentes, incluindo o “conhecimento e a habilidade do mestre manufatureiro, e do homem que planeja e arranja uma produção produtiva, que deve conhecer a situação dos mercados e as qualidades de diferentes materiais, e que tem algum tato sobre compra e venda…”. Esses “mestres”, “empregados” e “inventores e empreendedores de novos trabalhos” são autênticos trabalhadores, então eles tem uma reivindicação justa à sua porção dos lucros. “O trabalho e a habilidade do inventor, ou do homem que arranja e adapta-se como um todo, são tão necessários quanto o trabalho e as habilidades daquele que executa apenas uma parte, e eles devem ser pagos adequadamente”.

3) Outro ponto é ainda mais significativo, porque ele claramente separa a crítica de Hodgskin aos capitalistas das propostas socialistas. Se é verdade que o trabalhador deve receber o produto inteiro de seu trabalho, também é verdade que os bens em uma sociedade avançada são o produto de uma divisão complexa de trabalho em que muitas pessoas contribuem para a fabricação de um único bem econômico.

Então como pode um trabalhador específico receber uma compensação justa, quando é impossível separar sua contribuição daquelas de muitos outros? Há apenas uma forma, de acordo com Hodgskin, a saber, permitir que os trabalhadores (incluindo empregadores, fabricantes, empreendedores e outros)  se aperfeiçoem livremente em um mercado competitivo. Como Hodgskin coloca:

"Não há princípio ou regra, até onde eu sei, para dividir o produto de um trabalho conjunto entre os diferentes indivíduos que contribuíram na produção, além do julgamento dos próprios indivíduos; esse julgamento, dependente do valor que os homens podem definir aos diferentes tipos de trabalho, nunca pode ser conhecido, nem qualquer regra pode ser dada para sua aplicação por qualquer pessoa. Assim como um homem não pode dizer aos outros o que eles devem odiar ou o que eles devem gostar."

Em cada estágio da produção, uma pessoa deve decidir quanto ela está disposta a pagar pelos materiais e serviços necessários para produzir sua porção, e várias dessas avaliações subjetivas são refletidas no valor do produto final. Então, quando algo é finalmente produzido sob uma divisão de trabalho avançada, “não há mais nada que podemos chamar de recompensa natural do trabalho individual”.

"Cada trabalhador produz apenas uma parte do total, e cada parte tendo nenhum valor ou utilidade por si só, não há nada que o trabalhador possa se apoderar e dizer: 'Esse é o meu produto e irei guardar para mim'."

Dadas as várias pessoas e habilidades diferentes que são exigidas para produzir mesmo um bem simples sob uma complexa divisão de trabalho, como devemos determinar a recompensa que deve ser feita a um trabalhador em particular? Hodgskin responde essa questão como segue:

"Eu não conheço nenhuma forma de decidir isso a não ser deixar para ser decidido pelos julgamentos irrestritos dos próprios trabalhadores. Se todos os tipos de trabalho fossem perfeitamente livres, se não houvesse nenhum preconceito infundado envolvido algumas partes, e talvez as menos úteis, da tarefa social em grande honra, enquanto outras partes são impropriamente marcadas com vergonha, não haveria dificuldade nesse ponto, e os salários do trabalho individual seriam justamente estabelecidos pelo que dr. [Adam] Smith chamou de 'a pechincha do mercado'."

Então vemos que Thomas Hodgskin não era um “socialista ricardiano”, ou um socialista de qualquer tipo. Pelo contrário. Ao invés de chegar a conclusões socialistas da teoria do valor-trabalho, Hodgskin a empregou como um alicerce para o laissez-faire. Apenas em um livre mercado, ele sustentou, os trabalhadores de todo tipo podem receber a recompensação justa por seu trabalho.

Seria impossível explorar os muitos problemas na crítica de Hodgskin ao capital e aos capitalistas sem simultaneamente discutir a teoria do valor-trabalho em que a crítica depende. Mas deve ser notado que os principais defensores da teoria do valor-trabalho, mais notavelmente Smith e Ricardo, eram incapazes de fornecer uma explicação completamente satisfatória do lucro gerado pelo capital.

Embora fosse geralmente entendido que o capitalista adianta os salários aos trabalhadores, e portanto renuncia o consumo presente pelo consumo futuro, a maioria dos economistas clássicos falhou em entender a relação crucial entre a preferência temporal e os juros que o capital acumula. Embora Hodgskin prezasse (e elogiasse) o papel da tomada de riscos do empreendedor, ele também separou esse papel daquele do capitalista puro de forma artificial. Todo o investimento de capital em um livre mercado é tomado com algum grau de risco gerador de lucro.

III

Em 1823, Thomas Hodgskin co-fundou, com seu amigo Joseph C. Robertson, a revista Mechanics’ Magazine. Naquele tempo, “mechanic” referia-se aos artesãos habilidosos de um comércio especializado, ao invés de trabalhadores manuais em geral, então a Mechanics’ Magazine destacava artigos sobre os últimos desenvolvimentos na ciência e tecnologia que poderia ser do interesse de trabalhadores instruídos.

Com a máxima baconiana “Conhecimento é poder” em seu cabeçalho, a Mechanics’ Magazine salientava o papel crucial do conhecimento e da inovação em melhorar as capacidades produtivas do trabalho. Os inventores e engenheiros criativos, tais como James Watt (inventor da máquina a vapor), eram elogiados como exemplos que todos os trabalhadores deveriam buscar imitar. A tese de que o progresso do conhecimento é essencial ao aperfeiçoamento da classe trabalhadora era um tema recorrente nas obras  de Thomas Hodgskin, tema que ele iria elaborar em detalhe considerável em seu livro sobre economia, Popular Political Economy (1827).

Em vários artigos publicados na Mechanics Magazine, Hodgskin argumentou que o governo não era amigo da classe trabalhadora e que a liberdade individual do laissez-faire era a melhor política. Um voluntarista ardente, Hodgskin se opôs a toda a interferência estatal na educação. Ele escreveu na Mechanics’ Magazine (11 de Outubro de 1823):

"A educação de um povo livre, assim como sua propriedade, sempre irá ser direcionada mais beneficamente para ele quando for feita com suas próprias mãos. Quando o governo interfere, ele direciona seus esforços mais para tornar as pessoas obedientes e dóceis do que sábias e felizes. Ele planeja controlar os pensamentos, e molda até mesmo as mentes de seus cidadãos; e deixar em suas mãos o poder de educar o povo é a maior extensão possível daquela prática mais perniciosa que por tanto tempo assolou a sociedade, que é permitir um ou poucos homens de direcionar as ações e controlar a conduta de milhões. Os homens estariam melhores sem educação – propriamente dita, pois a própria natureza nos ensina várias verdades valiosas – do que serem educados por seus governantes; pois dessa forma a educação não é nada mais que a mera domação do novilho ao jugo; a mera disciplina de um cão caçador, que, por força da severidade, é obrigado a renunciar ao impulso mais forte da natureza e, ao invés de devorar sua presa, a leva aos pés de seu mestre."

Encorajado pelo sucesso da Mechanics’ Magazine, e inspirado pelas instituições educacionais de mercado em Edimburgo e em outros locais, Hodgskin e Robertson decidiram estabelecer o London Mechanics’ Institute. Como originalmente concebido, esse instituto de ensino era pra ser financiado completamente pelos próprios trabalhadores, sem contribuições privadas de patronos ricos – uma ressalva que foi alimentada pelo medo que quem controla o fio do dinheiro também controlaria a agenda.

As coisas não funcionaram como Hodgskin e Robertson imaginaram. Depois que Francis Plate, um organizador habilidoso com vários contatos para contribuidores em potencial (especialmente entre os benthamitas), foi trazido ao projeto, ele insistiu que o London Mechanics’ Institute não poderia sobreviver sem assistência financeira de fora. O financiamento, na forma de um empréstimo substancial, do Dr. George Birkbeck, ajudou a decidir a questão em favor de Francis Plate. Consequentemente, embora Hodgskin e Robertson desempenhassem papéis formais na fundação do London Mechanics’ Institute, nenhum deles nunca trabalhou no quadro administrativo (O London Mechanics’ Institute depois tornou-se o Birkbeck College, que agora é um ramo da Universidade de Londres).

As coisas não funcionaram como Hodgskin e Robertson imaginaram. Depois que Francis Plate, um organizador habilidoso com vários contatos para contribuidores em potencial (especialmente entre os benthamitas), foi trazido ao projeto, ele insistiu que o London Mechanics’ Institute não poderia sobreviver sem assistência financeira de fora. O financiamento, na forma de um empréstimo substancial, do Dr. George Birkbeck, ajudou a decidir a questão em favor de Francis Plate. Consequentemente, embora Hodgskin e Robertson desempenhassem papéis formais na fundação do London Mechanics’ Institute, nenhum deles nunca trabalhou no quadro administrativo (O London Mechanics’ Institute depois tornou-se o Birkbeck College, que agora é um ramo da Universidade de Londres).

Em 1826, Hodgskin proferiu quatro palestras sobre economia no London Mechanics’ Institute. Seu livro Popular Political Economy, publicado no ano seguinte, era uma expansão e reorganização do material contido nessas palestras.

Este livro altamente interessante merece mais antenção do que geralmente tem recebido. Mesmo alguns estudiosos libertários que elogiam Hodgskin por seu último livro, The Natural and Artificial Right of Property Contrasted (1832) – um verdadeiro clássico do pensamento libertário – não sabem bem o que extrair do Popular Political Economy. A teoria do valor de Hodgskin o torna suspeito aos economistas austríacos modernos, e a crítica ao capital e aos capitalistas no capítulo final parece ser nada mais que um resumo do material que Hodgskin apresentou em seu tratado de 1825, Labour Defended Against the Claims of Capital.

Embora admita que o material em Popular Political Economy seja de valor desigual – uma acusação que se aplicaria a todo livro de economia escrito durante o começo do século XIX – também afirmo que ele contém vários insights brilhantes e argumentos que anteciparam as ideias de F. A. Hayek e outros austríacos. Irei portanto dedicar o restante deste artigo e ao menos parte de meu próximo texto explorando algumas das teorias econômicas de Hodgskin.

Eu prossigo com essa discussão com um certo grau de medo e temor, porque até onde eu sei, de muitos anos de ensino, que nenhum assunto pode entediar tanto os leitores como a economia – especialmente as várias controvérsias técnicas na história do pensamento econômico. Mas eu também sei que os leitores libertários tendem a ser uma tribo inteligente, educada e inquisitiva, então estou disposto a arriscar perder uns poucos leitores para explicar alguns problemas na história do pensamento econômico que eram cruciais ao desenvolvimento da antiga teoria libertária.

Ao criticar os economistas britânicos mais influentes de seu tempo, mais notavelmente T. R. Malthus e David Ricardo, Hodgskin provou estar certo em quase todas as principais questões. A crítica de Hodgskin ao “princípio da população” de Malthus é sólida, assim como o é sua crítica da teoria da renda de Ricardo – dois pilares da doutrina, descartados muito tempo atrás por economistas, conhecida como a “Lei de Ferro dos Salários”. De acordo com essa doutrina, aqueles trabalhadores nos degraus mais baixos da escada econômica em um livre mercado estão condenados eternamente a um nível de subsistência de sobrevivência.

Essa doutrina pessimista – um contraste gritante comparado ao antigo otimismo econômico de Adam Smith, que Hodgskin buscava reabilitar – tornou-se parte e parcela da teoria da exploração de Marx, então o livro Popular Political Economy pode ser visto como uma refutação pré-marxiana de Marx.

Hodgskin não era um discípulo acrítico de Adam Smith, embora ele admirasse muito esse grande pioneiro. Pelo contrário, Hodgskin era um eclético que bebia de várias fontes, incluindo o brilhante economista francês J. B. Say.

Por exemplo, ao criticar a ênfase exagerada de Smith sobre a divisão de trabalho como o motivo principal do progresso econômico, Hodgskin baseava-se no insight de Say de que o progresso do conhecimento, que em muitos casos precede a divisão do trabalho, é a base última do progresso econômico, Esse foco no progresso do conhecimento – que era um regresso a Turgot, Condorcet e outros pensadores iluministas que defendiam a teoria do “progresso indefinido” – tornou-se a base a partir da qual Hodgskin lançou sua crítica à ortodoxia econômica de seu tempo, como defendida por malthusianos e ricardianos.

Devo explorar esse contexto histórico em mais detalhes no meu próximo artigo, Por ora, desejo fazer algumas poucas observações sobre o livro Popular Political Economy.

De acordo com Hodgskin, o progresso econômico depende da observação das leis da natureza, isto é, dos princípios gerais baseados na natureza dos seres humanos e na interação social. Toda a riqueza, tanto mental quanto material, é produzida pelo trabalho dos seres humanos, e tal riqueza tenderá a crescer conforme as pessoas perseguem seus próprios interesses dentro das fronteiras da justiça.

A intervenção econômica pelos governos não pode fazer nada para aumentar a riqueza ou acelerar seu progresso. Entretanto, os legisladores – que tipicamente são ignorantes da ciência econômica e que estão primariamente preocupados em preservar e aumentar seu próprio poder – “veem a sociedade humana como uma máquina de montar e regulada em todos os seus movimentos pelo político; e eles se esforçam para nos fazer acreditar que ela desmoronaria em pedaços se não fosse pelo poder protetor de sua maestria”.

A visão de Hodgskin é “totalmente diferente”. Proporcionar o bem-estar geral através da intervenção econômica está além do poder da mente humana. Nossos poderes, embora admiravelmente adaptados para fornecer nossas próprias necessidades, “são totalmente incapazes para captar, e muito menos para regular, as relações complexas da sociedade”. Tais esforços políticos tornaram-se “a cada dia, cada vez mais desprezíveis” à medida que as relações sociais tornam-se cada vez mais complicadas.

O que agora chamamos de “economia” era conhecido nos tempos de Hodgskin como “economia política”. Hodgskin contesta o último rótulo (ele estava entre os primeiros a fazê-lo) porque confunde as leis naturais da economia com os decretos artificiais (feitos pelo homem) da legislação. O livro de Hodgskin, que estabelece um “código de leis naturais” na esfera da economia, não oferece qualquer sugestão prática exceto de um tipo negativo. A maior lição ensinada pela ciência econômica é que os governos devem ficar fora dos assuntos econômicos.

De acordo com Hodgskin, uma ciência da intervenção econômica é impossível, dada as muitas variáveis envolvidas. Em outras palavras, não podemos especificar com precisão como uma regulação específica irá afetar a ordem econômica geral. É por isso que a ciência da economia é tão crucial. Ao nos dar conhecimento de como uma ordem econômica poderia funcionar em uma condição de liberdade perfeita, podemos entender, mesmo que apenas em termos gerais, os efeitos danosos da intervenção governamental.

Portanto é pelo entendimento das leis naturais da economia que também viemos a entender os efeitos danosos da interferência política, pois o conhecimento das leis econômicas nos permite rastrear as conexões complexas entre as causas e efeitos sociais.

A economia nos ensina, por exemplo, que “todas as medidas legislativas relacionadas à produção de riqueza” (tais como as Corn Laws e outras restrições ao comércio) não equivalem a nada mais do que beneficiar algumas pessoas às custas de outras. O legislador não pode aumentar a riqueza; o máximo que os “vãos e malformados esquemas dos legisladores humanos” podem fazer é alterar a distribuição de riqueza, isto é, “refrear ou tomar de uma classe e dar a alguma outra”.

Ao usar o termo “popular” como parte de seu título, Popular Political Economy, Hodgskin não quer dizer que reduziu um assunto difícil em uma leitura leve que pode ser entendida sem muito pensamento. Pelo contrário, por “popular” ele quis dizer a suspeita generalizada entre os leigos que deve ter algo terrivelmente errado com algumas das teorias defendidas pelos principais economistas, tais como T. R. Malthus em Essay on the Principle of Population.

Como Hodgskin via a questão, o notório homem comum, embora possa ser ignorante a respeito da economia técnica, frequentemente tem um melhor entendimento de como o mercado funciona de fato que os supostos experts em teoria econômica. Em um nível prático, o conhecimento econômico dos empreendedores, fabricantes, comerciantes e outros trabalhadores é muito superior ao conhecimento dos intelectuais – mas os trabalhadores, embora vários deles suspeitem que uma dada teoria econômica não seja nada além de junk science (para usar uma expressão moderna), são tipicamente incapazes de justificar suas suspeitas com raciocínio abstrato.

Por isso o título do livro de Hodgskin, Popular Political Economy. Sua apresentação é “popular” no sentido que busca justificar as dúvidas populares que várias pessoas cogitavam sobre o conhecimento econômico convencional.

IV

Apesar de algumas deficiências teóricas, Popular Political Economy contém várias discussões perspicazes, tais como a defesa de Hodgskin de uma moeda e de um sistema bancário de livre mercado. Talvez a discussão mais valiosa de Hodgskin (que antecipa os insights posteriores de F. A. Hayek e outros economistas austríacos) seja sobre o papel dos preços em transmitir informação vital em um livre mercado.

De acordo com Hodgskin, as variações e flutuações de preços são indicadores econômicos cruciais que “regulam o consumo”. Por exemplo, se o preço do pão não aumentasse quando os fazendeiros esperassem uma colheita ruim de trigo, “nenhuma pessoa seria advertida a tempo a diminuir o seu consumo, ou buscar por outro alimento que não seja pão de trigo; e antes da próxima colheita poderia haver fome generalizada”. Reciprocamente, se os preços não caíssem durante uma colheita abundante, uma boa parte de trigo seria desperdiçada.

Os preços são, portanto, “o índice das necessidades da sociedade”; eles indicam “a todos os homens como eles devem empregar seu tempo e seus talentos da maneira mais lucrativa para si, e da maneira mais benéfica para toda a sociedade”.

Ao caracterizar varejistas e atacadistas como “agentes indispensáveis, ao ajustarem a oferta dos bens à demanda e ao consumo”, Hodgskin nos deu um dos melhores tratamentos do mercado como um processo de coordenação encontrado na literatura de economia do século XIX.

Hodgskin construiu o problema da coordenação de mercado ao perceber duas coisas em relação aos produtos agrícolas. Primeiro, alguns bens levam mais tempo para serem produzidos que outros; segundo, alguns bens irão durar mais que outros, antes que estraguem e tornem-se inúteis como alimento. Porém, as pessoas precisam comer todos os dias.

Então, como é que um livre mercado pode fornecer uma oferta regular de alimentos, apesar dessas diferenças dramáticas em vários bens agrícolas? Hodgskin escreveu:

"Mas embora os produtos de diferentes espécies de trabalho estejam disponíveis em tempos desiguais, e são de tamanha durabilidade desigual, de tal forma que alguns devem ser imediatamente vendidos e consumidos, enquanto outros podem ser mantidos fora do mercado por meses, o apetite de cada trabalhador é renovado diariamente, e deve ser satisfeito todos os dias. Se estivéssemos cientes dessas leis naturais, nos influenciando e também os materiais de nossa subsistência, e se ao mesmo tempo soubéssemos que a grande maioria das operações exercidas em sociedade são, no longo prazo, de mesma utilidade, cada uma sendo necessária para a realização das outras, e que a sociedade civilizada provavelmente não poderia existir, e certamente não poderia florescer, desejando nenhuma delas, não deveríamos pensar em nós mesmos como obrigados a tomar medidas, pelas quais aquele cuja útil tarefa não pôde ser concluída e seu produto trazido ao mercado por vários meses, para que possa ser capaz de obter seu pão diariamente?"

Como se antecipando críticas posteriores ao planejamento econômico central, Hodgskin expressou uma debochante surpresa pelo fato de que “nossos homens do parlamento” ainda não tivessem reivindicado possuir a quase-onisciência que seria necessária para nos permitir “produzir cada bem na forma precisa, e no tempo preciso que fosse necessário; e não terem feito medidas para garantir a todas as classes de trabalhadores, independente do tempo que precisasse para seus produtos chegarem ao mercado, sua necessária subsistência diária”.

Tal conhecimento geral do mercado é impossível, nem é necessário. A capacidade do livre mercado de coordenar a oferta e demanda “cresce despercebida e não-influenciada” pelos legisladores. De fato, essa função crucial é realizada pelos comerciantes atacadistas e varejistas, que são motivados por nada mais que seus próprios interesses econômicos.

"Os negociantes… conhecem muito bem a utilidade de bens diferentes, e eles supõem, com precisão tolerável, os diferentes períodos em que uma dada quantidade será consumida. Eles compram, portanto, das várias classes de trabalhadores ou fabricantes seus diferentes produtos, e os compartilham da forma mais adequada possível à necessidade de todos. Eles reconciliam a aparente incongruência da natureza e, ao passo trabalham para si mesmos, são úteis para os outros. O importante negócio de distribuir a riqueza da sociedade de maneira efetiva em tais proporções que indivíduos possam obtê-la, para que então as necessidades diárias de todas as classes, mesmo daquelas cujos produtos não estarão finalizados por meses ou anos, podem ser convenientemente abastecidas, é, na verdade, realizado pelo distribuidor. Eles dirigem seus negócios, estou ciente, sem tal objetivo em vista; eles são levados a isso por uma visão instintiva de seu próprio interesse; e eles estão tão distraídos dessas grandes circunstâncias naturais que dão origem a sua ocupação, e tão ignorantes da grande utilidade à sociedade como um todo da subdivisão de trabalho que eles colocam em prática, como aqueles indivíduos que fingem que a natureza não regula nada, e que, por sua sabedoria ordenada, a sociedade não poderia existir."

De acordo com Hodgskin, em todos os casos em que o comércio “é voluntariamente exercido, podemos… estar certos que é benéfico a todos”. As trocas voluntárias permitem que cada pessoa persiga seus próprios interesses de acordo com seus próprios julgamentos. Embora os distribuidores, em sua busca pelo lucro, “sejam às vezes descritos como sugando o tutano dos ossos dos pobres trabalhadores”, essa descrição é completamente imprecisa..

O varejo é uma espécie de trabalho, e o varejista apenas pode lucrar se exercer “a maior economia ao distribuir bens” aos consumidores que os desejam. Os varejistas têm “um interesse direto em desempenhar bem seu papel, e fortes motivos para essa vigilância que é benéfica à toda a sociedade”. Hodgskin conclui:

"Sob a influência do auto-interesse, comprando e vendendo apenas tendo em vista seu próprio lucro, distribuidores distribuem toda a riqueza da sociedade na maneira mais econômica possível. Eles encontram consumidores até mesmo para recusar…"

Popular Political Economy continua com uma análise similar dos comerciantes atacadistas, que eram amplamente condenados pelo acúmulo de grãos e por então vendê-los por preços altos durante os tempos de fome. Embora a defesa de Hodgskin seja semelhante à encontrada no livro A Riqueza das Nações de Adam Smith, Hodgskin salientou mais do que Smith sobre o papel dos atacadistas em coordenar a atividade econômica. O espaço aqui não permite explorar esse aspecto do livro de Hodgskin, então eu deixo para os leitores descobrirem seu tratamento brilhante por si próprios.

Considerando geralmente, Popular Political Economy é uma crítica sustentada do “princípio da população” defendido pelo clérigo inglês Thomas R. Malthus (1766 – 1834). E isso nos traz alguns argumentos econômicos que, embora possam fracassar em cativar leitores modernos, geraram uma quantidade enorme de interesse e controvérsia nos dias de Hodgskin.

Antes do que Hodgskin chamou de “fama infeliz” dos argumentos de Malthus, a economia geralmente era vista (especialmente por Adam Smith) como um empreendimento otimista, que explicava como nenhum limite definido pode ser atribuído ao progresso econômico. Depois que uma teoria de “progresso indefinido” tinha sido integrada por alguns filósofos iluministas (especialmente o anarquista William Godwin) em seus futurísticos esquemas utópicos, Malthus respondeu em 1798 com uma crítica concisa, An Essay on the Principle of Population (embora Malthus tenha modificado suas visões em edições posteriores desse livro, foi a primeira edição que gerou a maior parte da controvérsia).

Malthus era amplamente considerado como tendo fornecido o coup de grace às teorias econômicas do progresso. Sua refutação repousava sobre a alegação (que não era original a ele) de que a população, “quando descontrolada, aumenta em uma razão geométrica”, enquanto a oferta de comida “aumenta apenas em uma razão aritmética”.

A significância econômica desse princípio da população é que a tendência constante de uma população de aumentar “tende a sujeitar as classes mais baixas da sociedade à miséria e evitar qualquer grande melhoria permanente de suas condições”. A pressão do crescimento da população relativo à oferta de comida irá impor limitações severas sob o progresso econômico. Isso significa que sempre existirá um número significativo de trabalhadores que nunca será capaz de adquirir mais que salários de subsistência.

Seria difícil superestimar a influência do malthusianismo no pensamento do século XIX, especialmente na Grã-Bretanha. Foi parcialmente devido a essa influência que Thomas Carlyle apelidou a economia como a “dismall science”. Quando David Ricardo incorporou o princípio da população em sua própria teoria econômica, tornou-se uma parte da ortodoxia benthamita.

De acordo com Ricardo, os salários, “como todos os outros contratos… devem ser deixados a justa e livre competição de mercado, e nunca devem ser controlados pela interferência do legislativo”. Isso também tinha sido a visão de Adam Smith, mas Ricardo injetou uma nota pessimista na expectativa de longo prazo para os salários reais que discordava da explicação de Smith, de acordo com que os salários reais do trabalho tenderão a aumentar em uma economia progressivamente em expansão, juntamente com o acúmulo de capital.

Em contraste, Ricardo manteve que o “preço natural do trabalho é aquele preço que é necessário para permitir aos trabalhadores, uns com os outros, de subsistir e perpetuar sua raça, sem aumentar ou diminuir”. Ricardo não negou que o preço de mercado do trabalho (“o preço que realmente se paga”) será determinado pelas forças de mercado da oferta e demanda, mas ele também manteve que “embora tanto o preço de mercado do trabalho possa desviar de seu preço natural, ele tem, como os bens, uma tendência a adaptar-se a ele” (quando antigos economistas falam de “preço natural”, eles grosseiramente querem dizer o que os economistas modernos chamam de “preço de equilíbrio”).

Uma coisa que diferencia a obra de Ricardo de Smith é o fato que o primeiro incorporou o princípio malthusiano da população, e era esse fator que embutia a teoria de Ricardo com um tom pessimista. A abordagem de Ricardo cai em algum lugar entre o pessimismo de Malthus e o otimismo de Smith. Quando, de acordo com Ricardo, o preço do trabalho de mercado excede seu preço natural, a condição do trabalhador é “próspera e feliz”. Mas a tendência de longo prazo é para o preço de mercado gravitar para o preço natural, porque salários maiores irão motivar os trabalhadores a ter maiores famílias, e isso, ao aumentar o número de trabalhadores, eventualmente irá trazer menores salários. Essa é apenas uma tendência, entretanto; na verdade, a taxa de salários de mercado “pode, em uma sociedade aprimorada, por um período indefinido, ficar constantemente acima” da taxa natural.

Muito do Popular Political Economy é uma crítica sustentada do malthusianismo e de seu uso por Ricardo, especialmente em conexão com sua teoria da renda.

A renda, Ricardo argumentou, surge das diferenças naturais de fertilidade entre as diferentes unidades de terra. À medida que mais terra é cultivada para encontrar uma demanda crescente por comida, menos terra produtiva é posta em cultivo. Consequentemente, cada unidade de trabalho agrícola irá tornar-se menos produtiva, devido a pior qualidade dessa terra (essa é essencialmente uma teoria da produtividade marginal aplicada à agricultura). Então, quanto mais trabalho for necessário para produzir a mesma quantidade de comida em menos terra fértil que poderia previamente ser produzida em mais terra fértil, o preço real dos produtos agrícolas irá aumentar relativo a outros bens. Essa, Ricardo concluiu, é a principal razão do por que a oferta de comida nunca irá manter o ritmo com o crescimento populacional e por que os salários irão tender a cair ao nível de subsistência.

Hodgskin, embora não negasse que devemos recorrer “a solos de fertilidade cada vez menores”, questionou as conclusões que Ricardo extraiu de sua teoria. Pois mesmo Ricardo tinha concebido que vários fatores, tais como avanços tecnológicos, irão tender a atenuar os preços mais altos dos alimentos gerados pela produtividade diminuída do solo menos fértil. Então, dado que “há várias circunstâncias que compensam a fertilidade decrescente”, Hodgskin não poderia entender como Ricardo pode dogmaticamente concluir que essas circunstâncias atenuantes não iriam neutralizar os efeitos da fertilidade decrescente no longo prazo.

Mais uma vez Hodgskin apelou ao otimismo de Adam Smith sobre o pessimismo (relativo) de Ricardo. Smith tinha argumentado que os preços de quase todos os bens irão diminuir com o progresso econômico, devido a uma maior divisão de trabalho e novas tecnologias. Hodgskin mantinha que não há nada único sobre os produtos agrícolas que devem isentá-los dessa tendência geral. Ele também chamou atenção para as várias inovações e máquinas que tinham aparecido desde o tempo de Smith, que “diminuíram a um grau quase inconcebível, o trabalho necessário para produzir carne ou fazer pão”. Então a “opinião que o preço natural dos alimentos, reduzem ao invés de aumentarem com o progresso da sociedade, me parece corroborada pelos fatos”, porque “no progresso da sociedade, os alimentos são obtidos por cada vez menos trabalho”.

Deixando os argumentos técnicos de lado, é importante entender a abordagem básica de Hodgskin. Ele acreditava que o progresso do conhecimento é a principal razão do progresso econômico. O avanço do conhecimento irá gerar invenções e tecnologias “poupadoras de trabalho” – inovações que não podemos possivelmente predizer ou prever. É portanto não permissível para os economistas estipularem limites necessários ao progresso econômico, como se a criatividade humana e a inovação nunca avançarão além de seu estado atual.



Por George H. Smith
19 de Junho de 2012
Via União Agorista
Tra.: Robson Silva - Rev.: Uriel Alexis 
Em: https://www.libertarianism.org/publications/essays/excursions/thomas-hodgskin-libertarian-extraordinaire-part-1 [2-3-4]